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A Monarquia Dividida (lRs 12.1-2Rs 18.12)

Para os editores de Reis, os dois séculos que se seguiram a Salomão foram sombrios na mesma medida em que foi gloriosa a era de Salomão. Atos historicamente significativos de julgamento divino abrem e fecham o período, com apostasia crescente nesse ínterim. No aspecto literário, histórias proféticas, especialmente em torno de Elias e de Eliseu, dominam o relato. No aspecto temático, os editores salientam como a idolatria do reino do norte acarretou um terrível julgamento de Javé. Assim andaram os filhos de Israel em todos os pecados que Jeroboão tinha cometido; nunca se apartaram deles, até que o SENHOR afastou a Israel da sua presença, como falara pelo ministério de todos os seus servos, os profetas; assim foi Israel transportado da sua terra para a Assíria, onde permanece até ao dia de hoje. 2Rs 17.22-23.

Roboão e Jeroboão – O Reino Dividido em Dois (lRs 12.1-14.31)

Pelo fato de Salomão ter tolerado a idolatria, um julgamento divino desastroso teve início no reinado de Roboão, filho e sucessor de Salomão. O profeta Aías profetizou que Jeroboão, um efraimita muito capaz a quem Salomão destacara para supervisionar os grupos de trabalho provenientes do norte em Jerusalém (11.28), levaria as tribos no norte à independência.’ O oráculo evidentemente tornou pública a rebelião de Jeroboão, de modo que ele fugiu para o Egito a fim de escapar da ira de Salomão (v 26-40), retornando após a morte dele.

A Política Drástica de Roboão (12.1-24)

O encontro com Jeroboão ocorreu na antiga Siquém, local de muitas convocações históricas israelitas (cf. Js 24). Roboão queria que as tribos do norte o reconhecessem como rei, mas elas queriam ser aliviadas das exigências opressoras de Salomão.” Seguindo conselhos insensatos de amigos ambiciosos, o arrogante Roboão anunciou que sua política seria ainda mais dura que a do pai. Assim, liderados por Jeroboão, os israelitas declararam independência, invocando um antigo lema político nortista: “Que parte temos nós com Davi? Não há para nós heranças no filho de Jessé! Às vossas tendas, ó Israel! Cuida agora da tua casa, ó Davi!” (v. 16; cf. 28m 20.1).

Roboão fracassou na tentativa de impor suas exigências. Os israelitas assassinaram seu superintendente, Adorão, e uma intervenção profética impediu que suas tropas marchassem para o norte. Somente Judá permaneceu leal (v. 20), embora Benjamim formasse parte do exército de Roboão (cf. v. 21-24). Deus usou o erro estratégico de Roboão para julgar Judá pela idolatria e pela opressão de Salomão -julgamento na forma da insurreição de Jeroboão.

A Religião Rival de Jeroboão (12.25-14.20)

Os editores de Reis lembram-se de Jeroboão por dois fatos principais -descobrir uma forma rival de javismo no norte e ser condenado pelos profetas.’ Temeroso de que as peregrinações para Jerusalém sabotassem seu reino, Jeroboão proibiu as viagens para o templo de Salomão e estabeleceu santuários alternativos em Dã e em Betel. Ele não somente proveu esses “lugares altos” de sacerdotes e assistentes que não descendiam de Levi, como também lhes deu bezerros de ouro, como os cultuados por Israel no Sinai (Êx 32.1ss.). A arqueologia indica que provavelmente esses bezerros eram apenas pedestais em que se colocaria o Javé invisível.’ Mas sem dúvida o povo comum identificou-os com imagens do culto à fertilidade dos cananeus e começou a misturar o culto a Javé com o culto a Baal. Esse sincretismo explica a censura profética contra Jeroboão e seus santuários (e.g., da parte de um homem de Deus, 13.1-32; de Aias, 14.14-16).5 Jeroboão chegou a mudar a data da festa principal da nação, provavelmente a festa dos Tabernáculos (cf. Nm 19.12-39).

Dificuldades Internas e Externas (14.21-15.34)

No governo de Roboão, a apostasia religiosa que caracterizara o reinado de Salomão tornou-se mais patente. O javismo debatia-se com a religião cananéia, como indicam a menção de aserins (ARA “postes-ídolos”) e da prostituição cultual masculina (v. 23s.).6 Roboão também teve dificuldades para conduzir o navio do estado de Judá através de mares políticos tempestuosos. O exército de Judá continuou suas lutas militares contra seu rival do norte, sem que nenhum deles conseguisse supremacia (v. 30; cf. 15.6). Para piorar a situação, o poderoso líbio-egípcio Sheshonk (Sisaque, na Bíblia) invadiu Judá (c. 926 a.C.) e exigiu tributos pesados, chegando a pilhar os escudos de ouro de Salomão (v. 25-28).7 Inscrições de Sheshonk no templo de Karnak no Egito confirmam o rastro de sangue deixado por sua campanha: tropas egípcias devastaram mais de 150 localidades em toda a Palestina e em Edom. Somente a instabilidade política no Egito impediu Sheshonk de impor devastação ainda maior. Roboão substituiu os escudos de ouro perdidos por escudos de bronze, assinalando o fim da era de ouro de Judá (v. 26s.). Os editores de Reis entenderam todo o evento como um julgamento de Deus contra o povo de Judá por sua apostasia. Após o breve e inexpressivo reinado de Abião (15.1-8, ou Abias), Reis apresenta o longo governo de Asa (c. 911-870) com sua fórmula típica para governantes de Judá. Especificamente, (1) sincroniza a ascensão do rei ao trono com o governo do rei do norte; (2) declara a duração de seu governo; (3) dá o nome de sua mãe;” e (4) avalia seu reinado, geralmente em comparação com a devoção religiosa de Davi (v. 9-11).9Asa é um dos poucos reis de Judá de quem os editores fazem avaliação favorável. Tematicamente, ele representa o primeiro reformador religioso de Judá – o precursor de Ezequias e Josias? Sua devoção religiosa também realça quanto o reino do norte se tornara apóstata sob a religião rival de Jeroboão.

O julgamento divino logo recaiu sobre a dinastia abominável de Jeroboão, como os profetas haviam predito. Num levante violento, Baasa, de Issacar, tomou o trono de Nadabe, filho de Jeroboão, aniquilando toda sua família (v. 27-30). Ao prover um culto alternativo ao de Jerusalém, Jeroboão ultrajou os editores de Reis. Eles lembram constantemente os leitores de que Jeroboão conduziu Israel a um pecado público e flagrante (e.g., 16.26; 22.52) e o condenam por não proteger Israel da contaminação religiosa.” Assim, o reinado de Jeroboão, formado para levar julgamento a Judá, também foi vítima do julgamento divino. É significativo que, por causa da apostasia, a breve dinastia de Baasa (i.e., ele e seu filho Elá) sofreu a mesma condenação profética e o mesmo julgamento humilhante que a de Jeroboão (15.33-16.14).

A Casa de Onri – A Construção da Capital do Norte (16.1·34)

o reino do norte nunca estabeleceu uma dinastia real estável. Nadabe, filho de Jeroboão, governou por apenas dois anos antes de ser morto, junto com a família, por Baasa (15.27-30). Elá, filho de Baasa, sofreu o mesmo destino nas mãos de Zinri, um comandante militar (16.8-14). Mas Zinri reinou apenas sete dias antes de outro general, Onri, sitiar sua capital em Tirza. A morte de Zinri dividiu a lealdade do povo entre Onri e Tibni, mas acabou prevalecendo o primeiro. Para seu crédito, Onri por fim estabilizou politicamente o reino do norte. Deu-lhe uma capital permanente, Samaria, um sítio admirável perto de Siquém. Onri a comprou legalmente, de modo que, como a Jerusalém de Davi, a cidade era de sua propriedade. A cidade permaneceu como capital até ser destruída pela Assíria, 150 anos mais tarde, sendo um tributo à capacidade de Onri como arquiteto e construtor. Conforme observa um arqueólogo moderno: “Samaria atravessa a principal rota norte-sul, vigilante a qualquer avanço de Judá e em fácil contato com a Fenícia […] Era igualmente importante para ele [Onri] ter fácil comunicação com o oeste, onde ficavam as terras mais ricas de seu reino. Sob todos os aspectos, Samaria estava muito mais bem localizada do que Tel EIFará [Tirza]”.

Escavações têm descoberto construções grandiosas de Onri, projetos continuados por Acabe, seu filho. O luxo denunciado por Amós, um século mais tarde, começou com Onri.” É provável que o movimento político mais nocivo tenha sido sua aliança com a próspera cidade fenícia de Tiro, um pacto selado com o casamento de seu filho, Acabe, com Jezabel, filha do rei de Tiro (16.41).14 Esse pacto lhe abriu de imediato um mercado para os produtos agrícolas de Israel e lhe deu poderio militar suficiente para impedir que os arameus de Damasco invadissem seu vasto território na Transjordânia. Mas, para os editores de Reis, o pacto teve um inconveniente desastroso que anulou por completo seus benefícios: acabou fortalecendo Acabe e Jezabel, que se aproveitaram da posição real e dos recursos para promover o culto de Baal em Israel. Felizmente, Deus providenciou uma testemunha poderosa para Israel, Elias, o profeta, para se contrapor àquela política e promover a fé verdadeira. À dinastia de Onri cabe cerca de um terço do espaço no relato sobre as casas dos Reis, embora ocupe apenas um décimo dos 400 anos abrangidos pela narrativa. Pelo tamanho, detalhes e centralidade de seu relato, os autores de Reis estão evidenciando que a luta entre Javé e Baal era a peça principal de seu entendimento da história de Israel.

Elias contra Acabe e Jezabel – Israel numa Hora Crítica (1 7.1- 22.53)

Os embates entre Elias e Acabe conduzem a trama de IReis 17-22. 17 Como tema principal, os conflitos detalham onde Israel errou e descrevem o julgamento divino que virá sobre os responsáveis. Esses capítulos apresentam “um épico […] que reconta a grandiosa batalha que determinou para sempre o destino de toda a nação”.

A Religião Cananéia.

Israel considerou atraente o culto a Baal. Os ídolos dos deuses cananeus da fertilidade ofereciam-lhes algo tangível para cultuar, e as festas de Baal nutriam a paixão dos israelitas pelo vinho e pela imoralidade. Baal era o senhor do vinho e o deus da fertilidade, de modo que o baalismo ensinava a bebedeira e a licenciosidade sexual como obrigações religiosas. Os adoradores de Baal criam que a relação sexual no culto com prostitutos religiosos (t anto homens como mulheres) promovia a fertilidade. Entendia-se que a prática incentivava Baal a ter relações com sua consorte, garantindo assim a fertilidade da terra.

Além disso, embora cultuado em formas locais, Baal tornara-se um deus universal para os cananeus. O deus de Jezabel era Baal Melcarte (ou simplesmente Melcarte; também transliterado Milcarte), a forma de Baal reverenciada em sua cidade natal, Tiro. Mas textos ugaríticos implicam que o título Melcarte (lit., “rei da cidade”) dado a Baal proclamava-o senhor do mundo dos mortos, sendo que sua autoridade não se limitava a nenhuma área geográfica.” É por isso que os editores de Reis consideram o baalismo tão ameaçador. Por negar a soberania exclusiva de Javé, feria o centro da fé israelita. A manifestação (lRs 17-19). Essa unidade literária estruturada com esmero apresenta “uma Batalha dos Deuses” em que Javé assume os poderes de Baal. 20 O profeta Elias começou o tiroteio disparando contra Acabe uma declaração a queima-roupa: “Tão certo como vive o SENHOR, Deus de Israel, L.,] nem orvalho nem chuva haverá nestes anos segundo a minha palavra” (17.1). Uma vez que a religião cananéia cultuava Baal como o deus da vida e da fertilidade, o decreto implicava que, se Baal não conseguisse impedir a seca imposta por Javé, Israel deveria chegar a duas conclusões: (1) que só Javé, não Baal, é Deus, e (2) que Elias, não os profetas de Baal, é o verdadeiro mensageiro de Deus. Episódios subsequentes nos capítulos 17 e 18 servem para confirmar essas verdades. Ainda que envolvam personagens humanos, implicam um embate entre Javé e Baal, em que se refutam, ponto por ponto, as crenças populares acerca de Baal.21 Por exemplo, enquanto Israel ia secando, por falta de chuva, Javé fornecia comida e bebida a Elias no uádi Querite a leste do rio Jordão (17.2-6). De modo semelhante, durante toda a seca, Elias sustentou a viúva de Sarepta (cidade costeira ao sul de Sidom) e seu filho (v. 7-16), chegando a ressuscitá-lo (v. 17- 24). Os incidentes demonstraram que Javé, não Baal, controlava tanto a fertilidade como a própria vida. 22 A demonstração é ainda mais persuasiva porque o confronto ocorre na Fenícia, o território natal de Baal. No final, a viúva anuncia um dos temas centrais do capítulo, quando afirma que Elias, não os outros profetas, de fato fala sob orientação de Javé (v. 24).

As divindades concorrentes e seus profetas travaram a batalha decisiva no monte Carmelo (lRs 18). Mais uma vez, como que zombando seu oponente divino, Javé dispara o primeiro tiro, anunciando por meio de Elias que logo enviaria chuva (v. 1). Mais tarde no Carmelo, Elias, o único representante de Javé, teve um confronto dramático com 450 profetas de Baal (v. 20-40).23 Com ousadia, Elias convocou Israel a cultuar ou a Javé ou a Baal, de acordo com o deus que enviasse fogo sobre o sacrifício preparado (v. 21, 24).24 Mas quando a invocação completa de gritos e danças rituais nada produziu da parte de Baal (v. 26), Elias espicaçou seus agitados oponentes com sarcasmo zombeteiro (v. 27): “Clamai em altas vozes, porque ele é deus; pode ser que esteja meditando, ou atendendo a necessidades, ou de viagem, ou a dormir e despertará”. Ou pode ser que Baal não exista!

Quando chegou a vez de Elias, ele agiu com simplicidade notável. Sua oração foi curta, direta e sem manifestações frenéticas: “… responde-me, SENHOR, responde-me, para que este povo saiba que tu, SENHOR, és Deus…” (v. 37). De imediato, desceu fogo do céu, consumindo seu sacrifício e o próprio altar (v. 38). A visão alarmante atingiu Israel de tal maneira que todos reconheceram Javé como o único Deus (v. 39). Elias mandou executar os profetas de Baal (v. 40), e Javé confirmou que apenas ele era Deus, enviando a chuva já anunciada. A grande chuva quase surpreendeu Acabe antes que ele, apressado por Elias, chegasse a salvo ao seu palácio em Jezreel (v. 41-46). A penosa seca estava e cerrada! Se o capítulo anterior colocava em dúvida os atributos divinos reclamados por Baal, este episódio questiona sua própria existência. Para Israel, a escolha ficava entre Javé e uma simples ilusão. Mas o capítulo 19 mostra que as forças de Baal continuavam atuantes. Ameaçado de morte por Jezabel (v. 2), Elias fugiu para o deserto ao sul de Berseba (v. 3-5a). Ali Javé alimentou o profeta deprimido (cf capo 17), conduziu-o para mais longe, ao monte Horebe, e apareceu para ele num “cicio tranquilo” (v. 5b18).25 A cena de teofania lembra a manifestação de Javé a Moisés no monte Horebe (Êx 19,32-34) e retrata Elias como um segundo Moisés.” Javé enviou Elias de volta a Israel para ungir três líderes que usariam da violência para afastar Israel do culto a Baal: Hazael, rei da Síria; Jeú, rei de Israel; e Eliseu, sucessor de Elias (v. 15~18). Mas, dos três, Elias ungiu de fato só a Eliseu (v. 19-21; quanto aos outros veja 2Rs 8-10). Esse cumprimento parcial da missão assinala que o amargo confronto com Baal não seria uma batalha relâmpago, rápida e decisiva como no monte Carmelo, mas uma longa luta sangrenta.

O Fim de Acabe (LRs 20-22)

O restante de IReis detalha a gravidade do pecado de Acabe, pronuncia a sentença contra ele e registra sua execução. As duas vitórias heroicas de Acabe sobre Ben-Hadade da Síria (20.1-34) tornam-se surpreendentemente amargas quando um profeta anônimo anuncia pela primeira vez a morte do rei (v. 35-43). O motivo alegado é que Javé queria que Ben-Hadade fosse morto, mas Acabe o deixou livre.” O sangue frio com que Jezabel e Acabe fizeram planos para matar Nabote a fim de se apropriar da vinha dele confirma ainda mais a culpa de Acabe (cap. 21). Não surpreende que Elias exponha as sentenças de morte do rei perverso e de sua rainha desumana empregando termos fortíssimos (v. 20-24). Por fim, condenado mais uma vez por Micaías ben Inlá, Acabe morre em batalha, atingido ironicamente por uma flecha atirada ao acaso (cap. 22). Os editores de Reis entenderam que sua morte foi uma bem merecida punição anunciada pelos profetas.

Os Feitos de Eliseu (2Rs 1.1-8.29)

Ainda que Acabe estivesse morto, 2Reis 1 mostra que a religião cananéia estava bem viva. Quando Acazias, sucessor de Acabe (c. 853-852), adoeceu, enviou mensageiros aos sacerdotes ou profetas de Baal-Zebube, deus da cidade filistéia de Ecrom, para ver se ele o curaria. A missão implicava que Baal, não Javé, era o senhor de Israel e o condutor de seu futuro. Sempre dedicado opositor de Baal, Elias interceptou os emissários de Acazias, escapou de três tentativas de capturá-lo e anunciou que Acazias jamais se recuperaria (1.2-16). A profecia concretizou-se e Jeorão (ou -Iorão), irmão de Acazias, governou Israel até cerca de 841. A morte de Acazias e sua sucessão por um irmão, não filho, indicavam que a dinastia de Acabe estava terminando, assim como Elias profetizara.

Eliseu sucede a Elias. Para marcar a transição de Elias para Eliseu, 2Reis relata a “visita de despedida” deles aos “filhos” de Elias -i.e., profetas aprendizes ou discípulos (2.1-5). Quando um acontecimento dramático e misterioso tirou Elias de sua presença, Eliseu clamou: “Meu pai, meu pai, carros de Israel, e seus cavaleiros!” (2.12). Alguns anos mais tarde, o rei Joás proferiu o mesmo lamento trágico por Eliseu, quando o profeta estava à morte (13.14). Em certo sentido, essa expressão é o fecho literário da vida de Elias. Dá a entender que líderes piedosos, não exércitos poderosos, davam força a Israel; seus profetas eram sua verdadeira defesa. Como herdeiro do ministério de Elias, Eliseu pediu que herdasse também seu poder (2.9). O pedido de medida dobrada do espírito de Elias não é algo presunçoso que requisite o dobro do que Elias possuía. Antes, busca uma porção dobrada como herança, assim como os primogênitos tinham direito a uma porção dobrada na partilha (cf. Dt 21.17).31 O episódio lembra a transição de poder de Moisés para Josué, retratando Eliseu como o novo Josué destinado a obter novas vitórias decisivas por Israel. Dois milagres inaugurais (2.19-22, 23-25) confirmaram que o poder de Deus estava mesmo com Eliseu, como estivera com Elias.

Eliseu e Jorão (c. 852-841). Assim como Elias causara problemas para Acabe, Eliseu atormentou Jorão – e com bons motivos! Exceto por reformas simbólicas, tais como a retirada da coluna de Baal erigida por Acabe, Jorão pouco se esforçou para desfazer os danos causados pelos pais (3.1-4). Os editores de Reis incluem algumas histórias para mostrar que ele partilhava da atitude displicente dos pais para com as exigências éticas e religiosas da aliança. A mesma negligência para com ajustiça social, encontrada na história da vinha de Nabote está por trás do apelo feito por uma viúva de profeta a Eliseu, pedindo que a resgatasse de um credor que ameaçava escravizar seus dois filhos (4.1-7; cf. 1Rs 21). Além disso, as histórias de Eliseu oferecem mais evidências dos sete mil que não se haviam curvado diante de Baal do que as encontradas em IReis (cf. lRs 19.18). Apesar dos jovens delinquentes que zombaram do profeta calvo (2.23s.),32 a mulher sunamita mostrou-se devota e generosa (4.8-37). Resistindo à tentação de consultar oráculos pagãos (1.2, 6, 16), grupos atuantes de profetas leais a Javé atenderam à liderança de Eliseu (2.15-18; 3.4- 8; 6.1-7).33 E ainda que a infiltração de religiões estrangeiras fosse uma ameaça \ à fé israelita, Israel estava envolvida em algum empreendimento missionário. Por exemplo, foi uma jovem cativa israelita que levou Naamã, comandante do exército sírio, a buscar cura com o profeta do Deus vivo e verdadeiro (5.1-27).

Dois episódios marcaram as políticas do reinado de Jorão. Primeiro, Mesa, rei de Moabe, a quem Onri e Acabe haviam forçado a pagar pesados tributos em ovelhas e lã, revoltou-se contra Israel (3.4-8). Reveses militares iniciais contra Jorão e seu aliado, Josafá de Judá, induziram Mesa a medidas desesperadas.” Ele sacrificou o filho mais velho, seu sucessor, a Quemos, a deidade moabita, como holocausto sobre o muro. Essa visão aterradora aparentemente provocou pânico nas tropas de Israel. O significado das palavras “houve grande ira contra Israel” é incerto (v. 27). Talvez Deus tenha usado essa cena estranha para confundi-los, de modo que os moabitas pudessem derrotá-los. Ou talvez alguns soldados israelitas supersticiosos (nem todos tinham a mesma percepção de Elias ou de Eliseu!) temessem a ira de Quemos na terra em que ele, não Javé, era o suposto soberano.

O segundo acontecimento notável foi uma série de incidentes entre Israel e Síria. Em 5.2 e 6.8 há indicações de que ataques contra Israel, especialmente na Transjordânia, eram prática costumeira dos sírios. Eliseu sem dúvida considerava santas as guerras de Israel e era consultado com frequência pelo rei antes das batalhas (e.g., 3.13-19; 6.9ss.). Se servia de auxílio para o rei de Israel, Eliseu era um espinho na carne do rei da Síria. O profeta parecia sempre saber a estratégia militar do rei antes que ele mesmo soubesse, de modo que não surpreende que o rei tomasse medidas drásticas, mas vãs, para eliminar Eliseu de sua terra (6.8-23). O episódio brinca com os temas literários da cegueira contra a visão e reflete uma verdade significativa: Javé preserva seu povo porque, sendo soberano, revisa os planos das nações.

Eliseu e os Sírios. Eliseu interferiu nos negócios sírios em outras ocasiões. Uma história impressionante desse período diz respeito ao cerco que os sírios impuseram a Samaria, quase matando-a de fome. O rei de Israel culpou Eliseu pelo desastre (6.31), talvez porque o profeta recomendara clemência para com os invasores sírios capturados (v. 20-33). Ou o rei talvez soubesse que Eliseu predissera a derrota numa profecia não registrada. Resistindo calmamente à fúria do rei, Eliseu profetizou o fim da fome logo no dia seguinte (7.1s.). A profecia se cumpriu quando os sírios fugiram apavorados com barulhos estranhos que interpretaram como um ataque inimigo, deixando equipamentos e rações (v. 3-20). Ironicamente, humildes leprosos e não escudeiros leais descobriram o desbaratamento e levaram a notícia. O episódio transmite a mensagem de que Deus cumpre fielmente sua palavra profética, muitas vezes por meio da ajuda inconsciente de seus humildes seguidores.

Numa viagem a Damasco, Eliseu soube que o velho Ben-Hadade, governante de Damasco e chefe da liga de cidades-estados araméias por cerca de quarenta anos, estava doente (8.7-9). Desesperado para saber sua sorte, BenHadade enviou presentes a Eliseu por meio de seu fiel mordomo, Hazael. A resposta de Eliseu foi desconcertante: “Vaie dize-lhe: Certamente, sararás. Porém o Senhor me mostrou que ele morrerá” (v. 10). A resposta aparente a Ben-Hadade era que a doença não seria fatal. Eliseu sabia, entretanto, que Hazael conspiraria contra o rei e que essa seria a causa de sua morte.” O olhar firme que o profeta lançou sobre Hazael foi causado pelo seu conhecimento tanto do assassinato planejado como do sofrimento que recairia em seguida sobre Israel (v. 12). Quando Hazael sufocou Ben-Hadade com um cobertor molhado, o trono de Damasco tornou-se seu.” Assim, Eliseu cumpriu a segunda parte da missão que Deus dera a Elias no monte Horebe (lRs 19.15).41 Os sírios atormentaram Jorão de Israel durante todo o seu reinado, enquanto Jeorão de Judá (c. 853-841), pai de Acazias, tinha seus próprios problemas (v. 20-24). Edom seguiu Moabe (3.3-8), revoltando-se contra seus senhores. Essa demonstração de independência destaca a fragilidade do reino do sul, já incapaz de manter sob controle os vizinhos do sul. 42 Com coragem e vitalidade surpreendentes, Eliseu ministrou por toda a terra aos simples e aos aristocratas, israelitas e estrangeiros. Mais de uma vez, atraiu a ira de reis, tanto de Israel como da Síria. Vestindo o rude manto de pelos que pertencera a Elias (1.8; 2.13), ele acalmou a angústia de uma viúva, ajudou um servo a recuperar um machado (6.5-7), frustrou Ben-Hadade e enfureceu Jorão. Além disso, iniciou o plano que derrubou a dinastia perversa e transgressora de Onri, cumprindo as horríveis profecias de Elias contra Acabe e Jezabel. No final, Eliseu fez jus ao nome, pois por seu intermédio “Deus salvou” Israel.

Jeú e Sua Casa – Problemas em Israel (9.1-14.29)

Para destronar a casa de Onri, Eliseu escolheu Jeú, oficial impetuoso e valentão do exército de Jorão, destacado para rebater contra-ataques sírios em Ramote Gileade (9.1-37). Da antiga maneira carismática -como quando Samuel escolheu Saul e Davi- o representante de Eliseu ungiu a Jeú, e os soldados deste o aclamaram rei. Com esse mandato, Jeú liderou um expurgo sangrento que reclamou uma hoste de vítimas: Jeorão de Israel (9.24), seu aliado Acazias de Judá (v. 27s.), Jezabel (v. 30, 37), os descendentes masculinos e os aliados de Acabe (10.1-11), quarenta e dois membros do clã de Acazias (v. 13s.) e todos os adoradores de Baal em Samaria (v. 18,27). Javé premiou a obediência de Jeú, prometendo-lhe uma dinastia de quatro gerações (v. 30). A consagração de Jeú concretizou a destruição que Elias predissera para a dinastia de Acabe (v. 1, 17, 30; 1Rs 20.21-22). Isso também evidenciou a contínua soberania de Javé sobre Baal e sobre a máquina política que por tanto tempo promovera o culto de Baal em Israel. Mas a brutalidade de Jeú trouxe consequências horríveis (veja Os 1.4). Em seu famoso Obelisco Negro, o assírio Salmaneser III registra que cobrou tributos de Jeú da casa de Onri (c. 841).43 Acabe juntara-se a Damasco contra Salmaneser em Carcar (c. 853), mas Jeú decidiu pagar tributo à Assíria. Ele se recusou a alinhar forças com Hazael da Síria contra a Assíria, de modo que Hazael atacou e destruiu Israel, reduzindo os limites de Israel na Transjordânia (10.32s.). Os editores de Reis interpretaram esse evento como a mão de Javé começando a reduzir o tamanho e o poder de Israel. A morte deJeú só incentivou os sírios a tomar maiores liberdades. E o reinado de Jeoacaz, filho de Jeú, levou Israel à beira do desastre. A nota enigmática em 13.7 mostra a impotência produzida pelo ataque de Hazael: “E foi o caso que não se deixaram a Jeoacaz, do exército, senão cinquenta cavaleiros, dez carros…” (Meio século antes, Acabe acionara dois mil carros na batalha de Carcar!). Revendo aqueles dias sombrios, os autores de Reis não tinham outra explicação para a sobrevivência de Israel, a não ser a lealdade à aliança por parte do Deus que prometera ser fiel aos patriarcas (v. 22s.).

Atalia e Joás (c. 841-835; c. 835-796). Quando Jeú matou Acazias, lançou Judá numa crise monárquica. A ambiciosa mãe de Acazias, Atalia, ocupou o trono dele e usou o poder para ampliar o culto a Baal Melcarte. Ao salvar o menino Joás (também dito – Jeoás), o sacerdote Joiada frustrou seu plano de destruir todos os concorrentes ao trono (11.1-3). Mais tarde, Joiada, que criou Joás, tramou secretamente a entronização do rapaz como rei e a execução de Atalia (11.4-21). A realização principal de Joás foi a restauração do templo, provavelmente negligenciado e profanado sob a influência de Atalia (12.1-21). Mas após fazerem tanto por Joás, os sacerdotes evidentemente ressentiram-se das tentativas dele de controlá-los. Talvez a conspiração palaciana que lhe custou a vida tenha resultado de suas medidas arbitrárias em relação ao projeto do templo. Além disso, ao pagar tributo a Hazael durante a campanha síria contra a cidade filisteia de Gate, Joás pode ter-se tornado impopular junto aos elementos mais belicosos de seu povo (v. 17-18). A longo prazo, a selvageria de Jeú teve outra consequência: dificultou as relações entre Israel e Judá durante o reinado de Jeoás (c. 798-782), neto de Jeú. Entusiasmado com o sucesso contra Edom (14.7), Amazias (c. 796-767), o rei de Judá, enviou um desafio arrogante a Jeoás de Israel. A réplica do rei do norte é típica das expressões sapienciais de que se orgulhavam os antigos reis e sábios: “O cardo que está no Líbano mandou dizer ao cedro que lá está: Dá tua filha por mulher a meu filho; mas os animais do campo, que estavam no Líbano, passaram e pisaram o cardo” (v. 9).45 Vindo Amazias a persistir, Jeoás esmagou suas tropas em Bete-Semes. Perseguindo o exército desbaratado de Judá, Israel tomou Jerusalém de assalto, derrubou uma parte de seus muros e pilhou o templo e o tesouro real (v. 11-14).

Jeroboão II (c. 793-753). Enquanto Amazias, filho de Joás, governava Judá, o hábil administrador e soldado Jeroboão II desfrutava de um longo e próspero reinado em Israel. Com a fragilidade da Síria e da Assíria, Jeroboão expandiu os domínios territoriais de Israel, exatamente como profetizou Jonas, filho de Amitai (14.23-29). Ele empurrou as fronteiras do norte de Israel até as proximidades de Hamate, no norte da Síria, e as do sul, até o mar Morto. Sem dúvida, incorporou também consideráveis áreas da Transjordânia, talvez chegando a alcançar, no sul, a Amom e a Moabe. Os editores de Reis viam Jeroboão como um salvador misericordioso enviado por Javé para tirar a nação da beira da ruína (v. 26s.). Mas nos rituais vazios de Israel e na sua opressão rotineira dos pobres, o profeta Amós encontrou justificativas para um julgamento completo. Parece que, no início de seu reinado, Jeroboão deu a Israel uma suspensão temporária do julgamento só para amadurecê-lo para um julgamento após seu término.

Os Últimos Dias de Israel (15.1-18.12)

Depois de Jeroboão, o reino de norte caminhou de modo direto, mas inconsciente, rumo à tempestade histórica que acabaria por destruí-lo. O avanço dessa tempestade pôde ser visto em dois desdobramentos significativos. Primeiro, Israel sofreu séria instabilidade interna – uma série de golpes violentos como os que derrubaram as dinastias de Jeroboão I, Baasa e Onri. Exatamente como predisse Oséias (1.4), a dinastia de Jeú entrou em colapso quando Salum matou Zacarias (c. 753-752), filho de Jeroboão II (2Rs 15.8-12). Apenas um mês depois (c. 752), o impiedoso Menaém assassinou, por sua vez, a Salum (v. 13-16). Menaém governou cerca de uma década e, ao que parece, sofreu morte natural, o único dos seis últimos reis de Israel a morrer desse modo.” Pecaías (c. 742), filho de Menaém, foi assassinado por seu capitão Peca, que ocupou o trono até c. 732, quando Oséias (c. 732-722) conspirou contra ele e tomou a coroa. O profeta Oséias, testemunha ocular, descreveu esse padrão implacável de intrigas e contra intrigas: Todos eles são quentes como um forno e consomem os seus juízes; todos os seus reis caem; ninguém há, entre eles, que me invoque (7.7; veja 8.4).

Segundo, sob Tiglate-Pileser In (c. 745-727) e seus sucessores, a ameaça de um ataque assírio voltou a exercer pressão externa contra Israel. Menaém (c. 752-742), Peca (742-732) e Oséias (c. 732-722), os três reis israelitas mais importantes desse período final, tiveram um sério acerto de contas com os invasores assírios, quer pelo pagamento de impostos, quer pela devastação sofrida (15.19s., 29; 17.3-6).

Uzias, Jotão, Acaz (c. 790-715). Enquanto isso, Judá gozava de relativa calmaria. Seus reis seguiram em geral um programa de conciliação com a Assíria e, após o golpe contra Joás (12.20), uma sucessão ininterrupta de reis davídicos governou Judá, tendo Jerusalém por capital. Judá beneficiou-se muito com a prática de estabelecer co-regências: o filho era colocado no trono pelo pai para que fosse identificado claramente como herdeiro, ao que parece muito antes da morte do velho rei. Isso evitava as dificuldades experimentadas quando da morte de Davi (1Rs 1). Todavia, após o longo e próspero reinado de Uzias (também chamado Azarias),” Judá foi forçado a lutar pela sobrevivência contra uma aliança entre Peca de Israel e Rezim de Damasco (c. 750-732), cujo objetivo principal era fazer oposição à Assíria (15.37). Jotão (c. 750-731), filho de Uzias, negou-se a participar dessa coalizão e incorreu na ira deles. Seu filho Acaz (c. 735-715) enfrentou uma ameaça ainda mais séria quando os dois reis sitiaram Jerusalém (16.5). Embora a invasão tenha fracassado, ao que parece Acaz perdeu para Rezim seu porto e suas indústrias em Elate (Eziom-Geber)?’ no golfo de Ácaba (v. 6).52 As invasões de Tiglate-Pileser à Síria e a Israel deram descanso a Judá, ainda que o preço fosse alto: ao aceitar tornar-se vassalo da Assíria, Acaz teve de esvaziar os tesouros e despojar parcialmente o templo a fim de pagar o tributo exigido (2Rs 16.5-9. 17- 20). Esse expediente foi bem útil a Judá no campo político, retardando por algumas décadas o ataque assírio contra Judá. Mas os editores de Reis destacam especialmente um ato de Acaz – a substituição do altar de Salomão por um de modelo assírio (v. 10-16) – para mostrar que Acaz era tão apóstata quando os reis de Israel (cf. v. 3). O episódio é interpretado como um momento decisivo e trágico para Judá – o dia em que escolheu a trilha da rebeldia que terminaria, gerações mais tarde, na falência nacional.

O Fim de Israel: Oséias (c. 732-722). Para ressaltar sua importância, os editores de Reis registraram o fim do reino do norte em detalhes (17.1-18.12). Durante o reinado de Peca, Tiglate-Pileser havia devastado grandes áreas de Israel, deixando intato apenas o centro em torno de Samaria (15.29). Assim, quando Oséias assumiu o trono (c. 732), nâo teve escolha senão aceitar pagar o tributo exigido por Tiglate-Pileser. Algum tempo depois que Salmaneser V (c. 727-722) sucedeu a Tiglate-Pileser, Oséias desafiou o senhor assírio e solicitou o apoio egípcio contra ele (17.4). Mas o Egito estava tão enfraquecido que não pôde ajudar quando Salmaneser precipitou-se sobre Israel e assaltou Samaria. A capital fortificada resistiu durante alguns anos, morrendo Salmaneser nesse ínterim. Seu sucessor, Sargão II (c. 722-705), encerrou a tarefa com uma vingança (c. 721).53 O orgulhoso reino de Israel havia caído para não mais se levantar (v. 1-6; Am 5.2). Aqui os autores fazem uma pausa para examinar as ruínas desse reino antes grandioso e para interpretar sua derrocada (2Rs 17.7-23; cf. 18.12). No verdadeiro estilo profético, eles consideram os assírios meros instrumentos de um Deus que teve de julgar a devassidão desenfreada e a completa depravação espiritual de Israel. Seu desprezo pela aliança, afirmam os autores, provocaram a fúria de Deus, sem deixar outra alternativa senão o julgamento.

Tal julgamento foi piorado pela deportação de boa parte dos sobreviventes israelitas e da introdução de hordas pagãs que contribuíram para a delinquência da terra com suas religiões estranhas. Essa mistura de povos era uma prática assíria corrente, tendo por objetivo refrear revoltas, esfriando os ânimos do patriotismo. O sincretismo étnico e religioso dos samaritanos (17.41), bem como a oposição deles à restauração de Judá (registrada em Esdras e Neemias) ajudam a explicar as atitudes hostis para com eles na época do Novo Testamento (e.g., Jo 4).

———– Retirado de: Lasor, Hubbard e Bush – Introdução ao Antigo Testamento.


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