No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito existiria (Jo 1.1-3).
… porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra […] tudo foi criado por ele e para ele (Cl 1.16).
DEUS CRIA POR SUA PALAVRA
O evangelho de Jesus Cristo nos revela Deus. O evangelho só tem significado se o Deus que o concebeu for o Senhor e Criador soberano do universo. Pelo evangelho sabemos o propósito da criação e o significado do universo. Os relatos da Criação em Gênesis 1 e 2 nos contam sobre o início de todas as coisas, além de nos informar sobre a relação entre elas. Como essas coisas deviam se relacionar está intimamente ligado ao propósito delas. Essas relações, que mais tarde foram perturbadas pelo pecado, estão no centro do evangelho, com o qual Deus está restaurando todas as coisas de volta às relações corretas.
Os relatos bíblicos da Criação são um tormento para a mentalidade moderna, uma vez que não tratam das questões para as quais desejamos respostas. Como posso saber se existe um Deus? De onde veio Deus? O que havia antes do início, e podemos mesmo considerar um início? Como Deus pode criar do nada? Qual é o significado da eternidade? Entre outras perguntas. Temos de nos satisfazer em procurar entender o que a Bíblia está nos dizendo. Nossa fonte principal é Gênesis 1 e 2, embora muitas outras passagens da Bíblia tratem do tema da Criação.
O que a Bíblia quer dizer quando afirma que Deus criou por sua palavra? O Novo Testamento menciona isso várias vezes: João 1.3; Colossenses 1.16; Hebreus 11.3; 2Pedro 3.5-7. Esses textos são importantes para a nossa compreensão do ensino do Antigo Testamento. Contudo, ainda é importante examinarmos os textos do Antigo Testamento em seus respectivos contextos israelitas originais. Não sabemos quem pela primeira vez teve a revelação de Deus a respeito da Criação. Muito se discute acerca de quando a passagem de Gênesis 1 e 2 foi escrita na forma em que a temos hoje. Mesmo que esses textos sejam de Moisés, de acordo com as atribuições mais conservadoras, ainda assim eles ainda ingressam na corrente do pensamento israelita percorrendo um longo caminho no curso da história bíblica. Menciono isso não para incitar dúvidas sobre a fidedignidade desses relatos, mas, pelo contrário, para chamar a atenção para a consciência, em Israel, da soberania absoluta de Deus e de sua palavra. Soberania significa exercer o poder de rei. Empregamos essa palavra em relação a Deus para dizer que não há absolutamente nada que ele não controle. A criação é uma demonstração dessa soberania.
Deus não teve início, mas o universo teve. Portanto, este foi criado a partir do nada, um fato muitas vezes referido pela expressão latina ex nihilo (do nada). A grandiosidade de Deus se manifesta no fato de ele simplesmente dizer “Haja…” para que as coisas passem a existir. Nada o compeliu a criar, pois não havia nada nem ninguém para o obrigar. Nem tampouco ele foi compelido por algo em si mesmo, como solidão, por exemplo. A soberania de Deus na criação significa sua liberdade absoluta. Soberania e liberdade absolutas são atributos além da nossa compreensão, pois jamais as poderemos experimentar. Não obstante, temos de aceitá-las como fatos a respeito de Deus e aprender a identificá-las em suas obras e em suas palavras.
Outro efeito da Criação pela palavra de Deus é deixar claro que ele decidiu relacionar todas as coisas pela sua palavra. Não há como enfatizar demasiadamente essa verdade. A supremacia da palavra de Deus no mundo remonta à Criação. Todas as criaturas têm de se curvar à palavra do Criador. O governo de Deus sobre a criação mediante sua palavra indica a real distinção entre Deus e sua criação. Algumas ideias modernas com intenso apelo para as religiões orientais ensinam que não existe nenhuma distinção real entre Deus e a criação. Considera-se que Deus é tudo, e tudo é Deus. Contudo, a Bíblia ensina que Deus se distingue e está além de tudo quanto foi criado e existe no universo. A palavra usada para definir essa distinção é transcendência. Essa nova moda baseada no hinduísmo e conhecida como meditação transcendental é, na verdade, uma negação de que existe um ser transcendente ou Deus.
A PALAVRA E A ORDEM ESTABELECIDA
Por que Gênesis 1 relata que a criação ocorreu em seis dias? A essa pergunta foram dadas diferentes respostas, que variam de “porque foi assim literalmente que aconteceu” até “porque se trata de um arranjo artificial para ajudar na memorização dos detalhes”. É verdade que a palavra hebraica para “dia” (yom) é empregada em todo o Antigo Testamento designando o dia normal tal como o conhecemos. Mas também é verdade que é usada para designar períodos de tempo mais longos não especificados. Não cabe aqui entrar nessa discussão, sobretudo no que diz respeito ao debate Criação versus evolução.
Entretanto, podem-se tecer dois comentários. Primeiro, a passagem é única e, por isso, apresenta algumas dificuldades de interpretação. As possibilidades são muito mais numerosas do que uma simples opção entre a história estritamente literalista (que normalmente se entende como a Criação levada a efeito em seis períodos de 24 horas) e um mito não histórico (que em geral é tido como não tendo nenhuma relação com o fato histórico). É claro que os textos do Novo Testamento citados no início deste capítulo (Jo 1.3; Hb 11.3; 2Pe 3.5-7) entendem a Criação como um acontecimento histórico.
Segundo, quando nos vemos diante de ambiguidades como essas, isto é, quando pode haver mais de uma possibilidade de entender uma passagem da Bíblia, o evangelho deve nos orientar, uma vez que ele é a palavra mais plena e definitiva de Deus ao homem. Pelo evangelho fica claro que Deus criou todas as coisas para uma finalidade e que ele exerce o seu governo sobre a criação mediante a sua palavra. Não está totalmente claro no evangelho que a Criação tenha ocorrido em seis períodos de 24 horas, nem tampouco que ela não tenha ocorrido assim. A questão não é se a Bíblia diz a verdade, mas como ela a diz.
Dos dois relatos da Criação (Gn 1 e 2) podemos extrair uma série de verdades essenciais para a mensagem bíblica. A Criação não diz respeito apenas aos primórdios, mas também ao propósito e às relações. Os dois relatos fornecem perspectivas diferentes sobre a única realidade, que é uma criação em que existe perfeita harmonia. Com harmonia queremos dizer ausência de conflito entre os vários elementos da criação. Os relatos bíblicos desafiam constantemente nossa tendência de presumir que o significado de determinadas qualidades, como harmonia, bondade, entre outras, são evidentes por si. Os relatos de Gênesis mostram que a criação tem uma estrutura, a qual é descrita, em primeiro lugar, no que se refere aos elementos principais do universo e suas relações (Gn 1) e, em segundo lugar, no que se refere aos seres humanos e suas relações (Gn 2). No primeiro relato, lemos a confirmação progressiva de Deus sobre a bondade da criação (Gn 1.10,12,18,21,25). Por fim, Deus declara que “… tudo quanto fizera…” era “muito bom” (Gn 1.31). Não há indicação alguma de qualquer padrão autoevidente de bondade ou harmonia fora de Deus ao qual ele tenha conformado a sua criação. Deus, a fonte tanto de uma quanto de outra, é quem as define apresentando uma organização que é a expressão de sua bondade e harmonia.
Desse modo, a boa ordem do universo é boa porque Deus declara que é. Ordem significa que existe uma função certa para cada coisa e uma relação correta de cada uma com todas as outras. Ordem também significa hierarquia. O Criador é Senhor sobre tudo e exerce esse senhorio pela sua palavra. Depois de Deus vem a humanidade, que recebe um senhorio secundário sobre o restante da criação. Desse modo, bondade e harmonia são características que só podem ser definidas por Deus, uma vez que ele estabeleceu relações entre ele mesmo e tudo quanto criou.
Posteriormente, quando Israel veio a entender a bondade à luz da revelação de Deus de sua graça salvadora, as narrativas da Criação lembrariam a nação de que Deus é a única fonte de bondade e o único que a define. Essa revelação também seria um testemunho de que as rupturas nas relações, tão evidentes na história bíblica, não são originais na ordem das coisas nem tampouco caracterizam o Deus que criou boas todas as coisas.
Deus não apenas cria o universo, mas também o rege. Essa providência, ou o governo contínuo do universo pelo Criador, vem a ser um aspecto proeminente da compreensão bíblica do propósito supremo de Deus, que nada, nem mesmo o pecado, pode frustrar. Ao estabelecer as relações de todas as coisas na criação e designar suas respectivas funções, Deus sustenta a ordem. O sol, a lua e as estrelas regulam o dia e a noite e as estações do ano (Gn 1.14-19). As plantas e os animais se reproduzem de acordo com a sua espécie (Gn 1.11-13,24,25). A existência humana de algum modo reflete a imagem de Deus e se caracteriza pelo domínio sobre o restante da criação (Gn 1.26-30). A vida humana é definida pela liberdade que Deus lhe deu e por limites e sanções. Somente um Deus constantemente comprometido em governar o universo pode advertir contra a rejeição de seu governo dizendo: “… no dia em que dela comeres, com certeza morrerás” (Gn 2.15-17).
DEUS AMA SUA CRIAÇÃO
Os relatos da Criação não defendem a existência de Deus nem procuram explicar como ele pode existir eternamente. Ser o único que existe eternamente significa que apenas ele pode nos dizer que ele, de fato, existe. É por isso que a sua Palavra não pode ser testada nem provada; ela tem de ser a autoevidente Palavra de Deus. Do mesmo modo, a criação é a autoevidente criação dele. A Palavra de Deus e a criação confirmam do único modo possível que Deus existe. Ora, com base nisso você pode supor que, quando um não cristão perguntar: “Como posso saber que Deus existe?”, tudo o que você precisa responder é: “A Palavra e a criação dele provam isso”. É uma resposta correta, mas não vai convencer o não cristão, por motivos que temos de deixar para o capítulo seguinte.
O Criador evidente por si mesmo, portanto, criou todas as coisas e estabeleceu entre elas uma ordem fixa de relações que ele afirmou ser muito boa. Como entender o sentido das palavras “… era muito bom…”? São palavras escritas em Israel e para Israel, que pertence a um mundo que continua existindo e ouvindo sobre o amor de Deus depois que o pecado entrou no mundo. Nesse contexto mais amplo, o ato livre de Criação e a aprovação de Deus expressa pelas palavras “muito bom” indicam um compromisso amoroso e imensamente forte da parte de Deus para com tudo o que ele criou. No contexto imediato de Gênesis 1, as palavras não necessariamente significam o compromisso amoroso e a intenção de continuidade, mas elas são coerentes com esses fatos, visto que surgem mais tarde nos registros bíblicos. Tudo o que a Bíblia diz sobre o compromisso de Deus com a sua criação e com o seu povo procede da comunicação inicial: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”.
Não é preciso muita imaginação para perceber que o Deus que cria também é o Deus que governa. Reino de Deus é um nome que não é usado na Bíblia até muito tempo depois, mas a ideia desse reino nos vem à mente de imediato quando pensamos na Criação. Esse ato livre de Deus e o seu governo contínuo sobre tudo o que ele criou, a sua soberania, comprovam o elemento fundamental da teologia bíblica que mencionei anteriormente neste capítulo: Deus é distinto de sua criação. Jamais devemos nos considerar, nem a natureza, parte de Deus. Nem Deus tampouco faz parte da “natureza” ou de seus processos. Portanto, ele não está sujeito às regularidades observadas na ordem das coisas, que chamamos de leis da natureza. É essa distinção entre o Criador e a criação, sobre a qual ele tem pleno controle, que subjaz aos milagres.
Como podemos falar do reino de Deus conforme ele foi revelado até este ponto nas Escrituras? O reino de Deus envolve as relações que ele estabeleceu entre si e tudo o que há na criação. Em outras palavras, Deus cria as regras para tudo quanto existe. Os dois relatos da Criação apresentam a humanidade como o centro da atenção de Deus e o alvo de uma relação singular com ele. Por isso, o foco do reino de Deus está na relação entre Deus e o seu povo. O homem é sujeito a Deus, enquanto o restante da criação é sujeito ao homem e existe para o benefício dele. O reino significa Deus governando sobre o seu povo no universo material. Esse entendimento elementar do reino jamais se altera nas Escrituras.
• A bondade da criação: No universo que criou para o seu povo, Deus reina sobre esse povo com o compromisso constante e amoroso com toda a criação. Isso é o reino de Deus.
HOMEM CRIADO À IMAGEM DE DEUS
O Antigo Testamento se refere apenas três vezes à criação do homem segundo a imagem de Deus: Gênesis 1.26,27 e 9.6. Nenhuma delas nos diz o que isso significa. A primeira liga a imagem (hebraico: tselem) à semelhança (hebraico: demuth) e, em seguida, ao domínio do homem sobre a criação. A segunda liga a imagem de Deus à criação do ser humano como homem e mulher. Em nenhum dos casos podemos afirmar que há intenção de definir o que significa ser criado à imagem de Deus. A terceira referência indica a criação à imagem de Deus como a razão para que o homicídio seja um crime punível com a pena capital.
Se são tão poucas as referências à criação à imagem de Deus, poderíamos pensar que não se trata de uma ideia muito importante. O mais seguro, porém, é concluir que o significado de ser criado à imagem de Deus é exposto de outras formas nas Escrituras. Ao se referir ao homem, a Bíblia mostra que ele tem dignidade especial diante de Deus. A imagem de Deus é um modo de se referir a essa dignidade. Podemos dizer sem dúvida que a imagem indica a singularidade dos seres humanos, que consiste no mínimo em uma relação especial com Deus. Ser conforme a semelhança de Deus (Gn 1.26) é outro modo de afirmar ser à imagem de Deus e não se refere a nenhum atributo distinto da imagem. O domínio não é a definição da imagem, mas, provavelmente, uma consequência dela. Se a sexualidade humana (Gn 1.27) está relacionada à imagem, deve estar em um nível não compartilhado pelas outras criaturas, que também têm sexualidade física.
Portanto, a imagem divina no homem demonstra que pertence à sua dignidade ser o seguinte, depois de Deus, na ordem das coisas (Sl 8.5). Embora Deus tenha o compromisso com toda a sua criação de mantê-la e preservar-lhe a boa ordem, a humanidade é o foco especial de seu cuidado. A criação existe para o nosso benefício. A humanidade é a representante de toda a criação, de modo que Deus lida com a criação com base em como ele lida com os seres humanos. Somente o homem é tratado como um ser que conhece Deus e foi criado para viver intencionalmente para Deus. Quando o homem caiu por causa do pecado, a criação caiu com ele. Para restaurar toda a criação, Deus age por intermédio de seu Filho, que se fez homem para restaurar o homem. A criação inteira aguarda ansiosamente que o povo redimido de Deus seja enfim revelado como filhos de Deus aperfeiçoados, pois nesse momento a criação será libertada de seu próprio cativeiro (Rm 8.19-23). Essa visão geral do homem como o objeto da redenção de Deus e de seu amor aliancístico confirma o significado central dado ao homem em Gênesis 1 e 2.
• A imagem de Deus no homem: A humanidade foi criada em uma relação única com Deus. Deus também trata com o homem pessoalmente como a criação mais elevada e o foco de seu propósito.
—- Retirado de Graeme Goldsworthy – Introdução à teologia bíblica
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