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NOÉ E A ALIANÇA

Duas palavras importantes são empregadas pela primeira vez na narrativa de Noé (Gn 6—9). São elas graça e aliança. Embora a humanidade, por causa de sua maldade, provoque a ira de Deus, Noé encontra graça aos seus olhos (6.8). Ele era um homem justo e íntegro, e andava com Deus. Em outras palavras, Noé vivia pela fé na palavra de Deus qualquer que fosse o modo que esta chegasse a ele. Quando a palavra lhe veio como uma ordem específica de construir uma arca, Noé obedeceu mesmo não percebendo claramente a razão para que essa embarcação enorme fosse construída. Quando o motivo se tornou evidente, ele e sua família foram salvos da devastação do Dilúvio. A graça não tem explicação clara aqui. A expressão hebraica “Noé […] encontrou graça aos olhos do SENHOR” não significa nada mais que “Deus gostou dele”. Aqui, a ênfase da expressão está no que Deus faz pelo homem de quem ele gosta. Ele o resgata. A justiça de Noé é simplesmente mencionada ao lado da graça de Deus, sem nenhum comentário se ela é a causa ou o efeito da atitude Deus para com ele. Depois vai ficar muito mais claro que a graça de Deus é a causa de pessoas pecaminosas se tornarem justas. A graça, portanto, é uma atitude de Deus para o bem daqueles que não merecem o bem.

Ao orientar Noé sobre como sobreviver ao Dilúvio, Deus lhe diz: “Mas estabelecerei contigo a minha aliança; tu entrarás na arca…” (Gn 6.18). Essa é a primeira referência a aliança, palavra que se tornará um termo bíblico fundamental empregado para expressar a relação entre Deus e o seu povo. Na vida comum, aliança é uma palavra que pode ser usada para designar um acordo ou contrato entre pessoas, que é um compromisso obrigatório para todos os participantes. Entretanto, só podemos compreender o significado da aliança de Deus observando como ela opera e qual é seu efeito.

A primeira referência a aliança, portanto, significa o compromisso de Deus de salvar Noé e sua família da destruição. Essa salvação não significa em si a vida eterna, mas é preciso dizer que ela certamente aponta para essa direção. A vida eterna como o Novo Testamento a define está muito além do que uma pessoa do Antigo Testamento podia vislumbrar. As expressões de salvação veterotestamentárias estavam relacionadas aos acontecimentos históricos desta vida, e seu progresso rumo ao pleno entendimento neotestamentário de vida eterna é uma das coisas que o nosso estudo da teologia bíblica vai expor. Temos razão para nos referir à primeira afirmação da aliança como uma aliança de salvação, não obstante o significado pleno de salvação ainda estivesse por ser revelado.

Noé e sua família demonstram confiança na palavra de Deus obedecendo. Eles existem em uma relação singular com Deus juntamente com todos os animais a bordo de seu pequeno mundo flutuante. Quando desembarcam em um mundo novo, Deus promete que, embora a humanidade, incluindo Noé, ainda seja inclinada para o mal, ele nunca mais destruirá o mundo com as águas de um dilúvio (Gn 8.21). Deus ordena que Noé encha a terra e exerça domínio, exatamente como ordenou a Adão (9.1-3). Em seguida, vem a segunda referência à aliança (9.8-17), que é o compromisso de Deus de nunca repetir o Dilúvio.

Nessas duas declarações da aliança, Deus dá o primeiro passo e estabelece uma relação que funciona para o bem da criação. Ele a chama de “minha aliança” em cada uma das vezes e, embora os detalhes sejam diferentes, devemos dizer que são expressões diferentes da única aliança. Além disso, agora está evidente que a aliança é uma expressão da relação que sempre existiu, pois todas as coisas foram criadas por Deus. Ele se recusa a permitir que a rebeldia humana o desvie de seu propósito de criar um povo para ser o seu povo em um universo perfeito.

• O compromisso de Deus com a criação se manifesta na aliança com Noé. O resgate de Noé e de sua família prenuncia a restauração da raça humana. Isso leva à promessa de que a terra também será preservada.

A DIVISÃO DA HUMANIDADE

Noé e sua família deixam a segurança da arca e se tornam o novo começo da raça humana (Gn 9.19). A narrativa relata como Noé um dia se deitou completamente embriagado e qual foi a reação de seus filhos. A consequência disso foi uma nova divisão entre as pessoas decorrente das bênçãos e maldições que Noé pronunciou sobre seus filhos. Canaã, filho de Cam, é amaldiçoado, e Sem, abençoado, enquanto Jafé compartilha das bênçãos de Sem (Gn 9.20-27). Essa passagem apresenta algumas dificuldades. O significado claro do texto é que apenas Noé e sua família sobreviveram ao Dilúvio, e todas as nações da terra descendem deles. As genealogias (árvores genealógicas) de Gênesis 10 se baseiam na palavra profética de Noé a respeito dos três filhos. Mas por que o filho mais novo de Cam é escolhido para ser amaldiçoado pelo pecado de seu pai? Que relação essas palavras têm com o futuro das nações mencionadas? Podemos pelo menos dizer que a bênção de Sem indica o lugar especial que ele e os seus descendentes têm no propósito de Deus. Esse propósito está de acordo com a aliança com Noé.

É difícil identificar todas as nações mencionadas nas genealogias. A menção da linhagem de Sem por último indica o significado especial que ela tem no propósito de Deus. Isso é confirmado posteriormente na genealogia mais detalhada de Sem até Abraão (Gn 11.10-32). Ser descendente natural de uma linhagem escolhida se mescla com a graça soberana de Deus, que pode transcender e de fato transcende todos os limites naturais ao longo da história da redenção. O significado dessas divisões vai ficando mais claro à medida que a história se desenvolve. Independentemente de como funcionam essas identidades nacionais (Gênesis 10 é vago a esse respeito), a subsequente combinação da graça soberana com a eleição nacional envolve três tipos de pessoas: o povo da aliança escolhido como nação, outras pessoas de nações não eleitas, que surpreendentemente são incluídas nas bênçãos da aliança nacional, e as nações que permanecem fora da aliança. Como o evangelho qualifica essas divisões veremos mais adiante.

Entre os quadros das nações e a genealogia detalhada de Sem até Abraão encontramos mais uma passagem difícil: o relato da Torre de Babel. Temos aí uma retrospectiva de um período anterior à divisão das nações e seus idiomas. Como conciliar isso historicamente com os fatos pós-diluvianos de Gênesis 9.18-28 não está claro. A narrativa (11.1-9) indica que a raça humana tinha planos de união e poder com base em interesse próprio. A unidade em si não é ruim; na verdade, ela é uma marca do povo de Deus quando este corresponde ao propósito divino. Contudo, unidade sob o governo de Deus é uma coisa, e unidade como arrogante independência de Deus é outra. Em Babel, vemos uma expressão coletiva da tentativa original de Adão e Eva de tirar Deus de sua posição legítima de Senhor do universo. Numa relação correta com Deus, as pessoas precisam apenas da aprovação de Deus para se realizarem. No entanto, os pecadores não se satisfazem de ser conhecidos pelo nome de Deus e buscam sua própria reputação e fama.

Para que essa rebeldia contra Deus não demonstrasse uma força indivisa, Deus confunde a unidade que as pessoas desejavam manter para seus fins maléficos. Não ficamos sabendo exatamente como isso se deu, mas teologicamente é considerado mais uma demonstração do juízo de Deus sobre toda a raça humana. Apesar do desejo de unidade universal, o que houve foi a fragmentação inevitável da sociedade em unidades menores, todas buscando sua própria primazia. O pecado causa divisão na vida humana. A confusão de línguas e a divisão das nações caracterizará a humanidade pecadora até que o poder redentor de Deus una em Cristo um povo tirado de todas as nações, tribos e línguas (Ap 7.9).

• A aliança de Deus distingue os que são escolhidos como objeto de bênção, os que de algum modo vão compartilhar dessa bênção e os que estão sob juízo

AS DUAS LINHAGENS DA RAÇA HUMANA

Quando estudamos Gênesis 4—11, podemos observar que alguns elementos fundamentais se destacam. Um deles é a divisão da humanidade em pelo menos dois grupos principais que têm relação bem diferente com Deus mediante a aliança divina. A aliança permanece como a recusa de Deus de permitir que o pecado destrua o seu propósito de criar para si um povo que tenha com ele um relacionamento perfeito. Esse compromisso existia antes da rebeldia de Adão e Eva, e a sua expressão como uma aliança de redenção mostra que Deus é sempre fiel às suas promessas, mesmo quando elas são dirigidas para um povo que rejeita o seu amor. A graça de Deus é o seu compromisso amoroso incessante com uma raça que agiu de um modo que não só não merece esse amor, mas, na realidade, merece exatamente o oposto.

A humanidade sem Deus é representada na linhagem de Caim. Digo representada porque temos de supor que até os descendentes de Sete, exceto Noé, estão entre os ímpios da época do Dilúvio. Essas genealogias a princípio se baseiam na descendência natural, mas o real caráter delas é mostrar a distinção entre dois tipos de pessoas: as que estão debaixo da graça e as que estão sob a maldição. Nessa perspectiva, portanto, a linhagem ímpia de Caim termina no Dilúvio. Mas não é tão fácil se livrar do pecado. A linhagem piedosa de Sete, que chega a Noé, sobrevive com a família de um só homem e acaba por se dividir novamente, de modo que mais uma raça ímpia surge por meio de Canaã. A linhagem de Sem dá continuidade à linhagem de Sete e chega a Terá, o pai de Abraão. Shem é a palavra hebraica para designar “nome”, e a raça ímpia busca o seu shem por seus próprios esforços (Gn 11.4), mas acaba sendo frustrada pelo castigo de Deus. Isso contrasta com a linhagem piedosa de Sem, a qual mostra que podemos obter um nome tão somente como objetos da graça salvadora de Deus. A única reputação que conta é ser conhecido como o povo de Deus, povo que se chama pelo nome dele.

Esses primeiros capítulos da Bíblia demonstram que os planos de Deus para o resgate da humanidade envolvem uma distinção contínua entre os resgatados pela graça e os perdidos em consequência do juízo sobre seus pecados. No Antigo Testamento, o destino final das pessoas sob juízo nem sempre é claro; todavia, existe uma distinção constante que nos remete para a doutrina neotestamentária da eleição para a vida eterna. Assim, Abel, não Caim, encontra favor de Deus. Noé e sua família são salvos, enquanto o resto da raça humana perece. Jafé compartilha das bênçãos de Sem, e Canaã é amaldiçoado. Por fim, entre a multidão da humanidade sob juízo, um só homem é escolhido, Abraão, o chefe de uma família mediante a qual o plano redentor de Deus se realizará.

A distinção entre os escolhidos e os não escolhidos não se baseia nem um pouco nas pessoas envolvidas. Isso não é tão óbvio nos estágios iniciais da revelação bíblica, e alguns talvez se inclinem a aventar que Abel, Sete, Noé, Sem e Abraão tinham algumas virtudes de fé ou boas obras que justificassem sua escolha. Esse tipo de visão solapa o significado da graça como fica claro no uso bíblico mais amplo e é explicitamente negado em muitas partes das Escrituras. Essa escolha, ou eleição, de Deus é entendida como absolutamente incondicional. A razão de Deus escolher um e não outro pertence somente a ele, pois nenhum rebelde contra o Senhor Deus soberano merece ser escolhido nem jamais pode fazer algo que convença Deus a escolhê-lo.

• A aliança de Deus se manifesta em sua efetivação em um plano de redenção. Isso envolve a eleição de indivíduos representativos por cujo intermédio o plano de Deus será levado a efeito. A eleição não se baseia em qualidade alguma dos eleitos.

—- Retirado de Graeme Goldsworthy – Introdução à teologia bíblica

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