Os onze primeiros capítulos de Gênesis condensam a história da humanidade desde a Criação até o início do segundo milênio a.C. em uma breve visão geral escrita de uma perspectiva teológica. O restante de Gênesis, 39 capítulos ao todo, trata apenas de quatro gerações de uma única família: Abraão, Isaque, Jacó e José. A história deles também foi escrita com um significado teológico em mente, mas o maior detalhamento é exigido em razão da singular importância dessa família no plano de Deus para a raça humana. A história mundial inteira está relacionada às promessas que Deus faz a Abraão. O significado definitivo da história se encontra na pessoa de Jesus de Nazaré, um descendente de Abraão.
Aos 75 anos de idade, Abrão (seu nome na época) saiu de Harã, no norte da Mesopotâmia, e, em obediência a Deus, viajou para Canaã acompanhado de seu sobrinho Ló, cada um com sua família. O tema central que perpassa a narrativa é a promessa da aliança a Abrão e como ela foi feita. Diversas vezes, a promessa é reiterada em um contexto de acontecimentos que parecem ameaçá-la e tornar seu cumprimento impossível. Desse modo, o patriarca aprende que tem de viver pela fé nas promessas de Deus mesmo quando parece que foram destruídas pelas circunstâncias. Em um momento decisivo, Deus muda seu nome de Abrão (pai exaltado) para Abraão (pai de uma multidão), a fim de simbolizar um aspecto proeminente da aliança: Abraão seria o pai de muitas nações. Ao mesmo tempo (Gn 17.1-14), Deus afirma que a aliança é assinada com o sinal da circuncisão. Essa marca feita na carne de todo filho hebreu do sexo masculino simboliza a relação especial que a aliança estabelece entre Deus e o seu povo.
O contraste entre Abraão e o povo de Babel é imediatamente óbvio. Babel manifesta o anseio por um grande nome sem Deus, e isso se mostra infrutífero. Depois desse relato, é apresentada a genealogia de Sem (“nome”) até Abraão. Deus promete engrandecer o nome de Abraão (12.2), e assim vemos que o único nome que importa vem pela bênção de Deus. A aliança é apresentada a Abraão na forma de uma promessa em quatro partes que permanecerá no centro da teologia bíblica:
- Deus dará muitos descendentes a Abraão.
- Eles possuirão a Terra Prometida.
- Deus será o Deus deles.
- Por meio deles, todas as nações do mundo serão abençoadas.
A importância dos desafios ao cumprimento das promessas é que estas indicam um cumprimento supremo que só pode ser obtido pela obra sobrenatural de Deus. Não é nada que esteja no controle do homem, nem é simplesmente uma questão de fatos naturais. Desse modo, no momento de seu chamado para sair de Harã, Abraão recebe a promessa da posse de Canaã por uma nação de descendentes seus que conhecerão a bênção de Deus e serão o veículo de bênção para todo o mundo (12.1-3). Em evidente oposição a essas promessas, observamos que a Terra Prometida está em posse dos cananeus, Abraão e Sara estão velhos, e esta, pela insensatez do marido, quase é tomada como esposa pelo rei do Egito. Quando Abraão e Ló se estabelecem em Canaã, logo descobrem que precisam separar-se para evitar a superpopulação de seus rebanhos e manadas. Ló escolhe o vale fértil do Jordão para si, deixando que Abraão vá para outro lugar. Deus confirma novamente a Abraão que ele e os seus descendentes tomarão posse da terra (13.14-18). Durante 25 anos depois de Deus ter feito essas promessas pela primeira vez, Abraão permanece sem filhos. Em momentos críticos desse período, Deus lembra Abraão de suas promessas, a fim de o suster diante das aparentemente impossíveis chances de elas se concretizarem (15.4-6,13-21; 17.1-21; 18.16-19).
Alguns temas bíblicos importantes são entrelaçados com a história de Abraão e da aliança. O primeiro é a graça. Como no caso de Noé, não há nada de especial em Abraão que mereça a bondade de Deus de chamá-lo para essas bênçãos. Tudo o que sabemos sobre ele é que morava entre povos pagãos e atendeu com obediência e fé ao chamado de Deus. Não sabemos nada sobre sua fé e o conhecimento de Deus que tinha antes disso. Não há indício nenhum de que Deus estivesse correspondendo à bondade de Abraão. Muito pelo contrário, a narrativa é contundentemente franca na descrição do patriarca com todos os seus defeitos e qualidades. Ele se dispôs a mentir a respeito de sua esposa em duas ocasiões distintas a fim de, pensava ele, preservar sua vida (12.11-20; 20.1-18). Pondo em risco com isso o seu casamento com Sara, ele demonstra falta de fé nas promessas de Deus e efetivamente age para minar as promessas de que Sara seria a mãe dos descendentes prometidos. A narrativa deixa claro que não podemos considerar merecida a bondade de Deus para com Abraão. Ao contrário, o retrato bíblico da graça livre e soberana de Deus se manifesta.
O segundo tema, que caminha junto com o da graça, é a eleição. Sempre que Deus age para o bem do povo, está agindo contrariamente àquilo que o povo, constituído de pecadores rebeldes, merece. Essa ação é graça. Eleição significa que Deus escolhe alguns, e não outros, como alvo de sua graça. É inútil buscarmos uma razão ao questionarmos por que encontramos uma linhagem piedosa e uma linhagem ímpia nos primeiros capítulos de Gênesis, ou por que Noé, e não alguma outra pessoa, encontra graça, ou por que Abraão, e não algum outro, foi escolhido como o pai de uma raça abençoada. Mais tarde ficamos sabendo que a eleição opera para a glória de Deus (Rm 9.19-24), pois ela demonstra a soberania divina. A eleição é um princípio que se manifesta em toda a história bíblica, e devemos tomar cuidado para não entendê-la mal nem procurar remoldá-la pela lógica humana em uma doutrina mais aceitável. Não podemos resolver esse mistério recorrendo a soluções fáceis, como a ideia de que Deus antevê a fé daqueles que ele posteriormente, e com base nisso, elege. Tampouco podemos levantar objeções falsas à doutrina, talvez aparentemente lógicas, tais como dizer que a eleição baseada na graça livre de Deus nos reduz a robôs ou marionetes sem nenhuma vontade nem poder de fazer escolhas.
O terceiro tema é a fé como o meio de restauração a Deus. A fé de Abraão certamente não era perfeita, nem sempre foi forte e algumas vezes beirou à incredulidade (Gn 15.2,3). No entanto, nos momentos decisivos, ele crê na palavra de Deus e em suas promessas. O segredo não é a força nem a perfeição da fé de Abraão, mas a força e a perfeição do Deus em quem ele confia. Abraão aprende que Deus é completamente confiável e fiel à sua palavra. E, visto que Abraão não merece nada do que lhe foi prometido, é preciso considerar isso uma dádiva pura e imerecida. É por isso que ele é contado como justo diante de Deus tão somente por crer (15.6).
À medida que a história bíblica revela o significado da graça, a eleição e a fé também se revelam. A revelação progressiva exige que sempre deixemos que as palavras posteriores e mais plenas de Deus interpretem o significado das anteriores e menos explícitas. Todos os temas fundamentais na história teológica de Gênesis serão desenvolvidos ao longo de todo o Antigo Testamento e vão encontrar seu cumprimento no evento do evangelho. Devo ressaltar mais uma vez que, embora expressões anteriores nos ajudem a entender as posteriores, é o cumprimento posterior que deve interpretar o significado real das expressões anteriores. Isso significa, obviamente, que as expressões anteriores indicam coisas além delas mesmas, maiores do que o significado que seria percebido pelos que receberam essas expressões anteriores.
• A aliança com Abraão inclui as promessas de Deus de que os seus descendentes se tornarão uma grande nação, tomarão posse da Terra Prometida e serão o povo de Deus. Por meio deles, todas as nações serão abençoadas. A aliança expressa a graça de Deus na eleição, e as suas bênçãos são recebidas pela fé.
—- Retirado de Graeme Goldsworthy – Introdução à teologia bíblica
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