Os salmos não são narrativas históricas. São canções destinadas a invocar, a celebrar e a agradecer a soberania de Deus sobre a vida de indivíduos e da nação eleita em termos típicos do Oriente Médio antigo.
Nesse gênero literário, que é caracterizado por linguagem estereotípica e hipérbole, não se deve esperar correspondência unívoca ou exata entre poesia e realidade em todos os aspectos e detalhes. Isso não significa dizer que os salmos não têm base ou fundo histórico. Significa, outrossim, que a história é filtrada pela experiência pessoal ou comunitária e, por isso, não é possível perceber tão claramente em Salmos o desenrolar real das quatro linhas de ação de Deus – a permissão do mal, o juízo contra o mal, a libertação dos eleitos e a bênção para os eleitos – que acompanhamos ao longo dos livros históricos. Percebe-se o anseio para que as três últimas linhas de ação de Deus se manifestem e a confiança de que um dia o mal permitido será efetivamente julgado. Salmos nos oferece testemunhos de relacionamentos vibrantes entre adoradores e seu Deus no transcurso de momentos históricos variados – de vitórias militares a invasão e exílio, de cura e libertação a angústia e quase morte. Nos salmos, encontramos orações e hinos de pessoas que confiavam em Deus e se voltavam para Ele em busca de refúgio das provações da vida. Robert Alden, com muita propriedade, escreveu: ―Não é no Novo Testamento que se encontra a melhor literatura devocional, e sim, no Antigo, no livro de Salmos. Os salmos, pelo fato dos salmistas falarem em generalidades, podem ser… aplicados largamente. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar da Bíblia, podese ouvir bater o coração dos santos. Aqui encontramos as expressões mais exaltadas da grandeza de Deus; aqui encontramos os gemidos mais amargos dos pecadores e dos aflitos. Nos salmos, encontramos algo para qualquer pessoa, seja qual for seu estado de espírito.
Assim, encontramos nos salmos a revelação feita por Deus, mediada pelas orações e hinos dos fiéis, de Sua soberania, afirmada e ansiada em meio aos desafios da vida. Assim, levando em conta a forma canônica pela qual o livro de Salmos chegou até nós, o referencial pactual latente nos salmos (as alianças abraâmica e davídica permeiam o livro) e a presença de um forte elemento messiânico (que é reconhecido no Novo Testamento), proponho que sua mensagem global seja a seguinte: A soberania de Deus é invocada e celebrada em petição e louvor por aqueles que, em meio à instabilidade da vida, anseiam por vê-la estabelecida definitivamente na terra em cumprimento das promessas pactuais a Israel.
Van Gemeren foi extremamente feliz ao comentar: ―O livro de Salmos é a prescrição divina para uma Igreja complacente, porque, por meio dele, Deus revela quão grande, maravilhoso, magnífico, sábio, e totalmente tremendo Ele é!. Estudar a pessoa e os atos de Deus em Salmos é um exercício devocional e teológico precioso para qualquer pessoa, não importa quão madura ou jovem seja na fé cristã. Com isso, é importante ver como Salmos descreve o homem, pois o lado humano do livro pode tentar seu leitor a considerar os salmistas como autores da revelação, e não seus veículos. Esses serão os dois tópicos centrais de nossa investigação.
É supérfluo dizer que Yahweh é o personagem central de Salmos. Seja como alvo da petição seja como motivo do louvor e exultação dos salmistas, o Deus de Israel é o ponto de convergência de todos os poemas do saltério. Um sem-número de categorias pode ser levantado para analisar a pessoa e a atividade de Deus nesse livro. Conforme já foi mencionado, a abordagem será um pouco diferente daquela utilizada nos livros históricos, deixando de lado o desenvolvimento do propósito de Deus nas chamadas quatro linhas de ação, concentrando nos principais atributos exaltados pelos salmistas e em algumas áreas de atividade relacionadas à posição de Yahweh como Soberano da aliança sob a qual os salmistas viviam e no contexto da qual formulavam suas expectativas quanto à presença e atuação de seu Deus em suas vidas.
Nos panteões da Mesopotâmia, Canaã e Egito a atividade criadora era atribuída a divindades distintas e ocorria em circunstâncias, na maioria das vezes, bizarras.30 Ainda mais, os deuses do Oriente Médio eram excessivamente imanentes, ao ponto de, em alguns casos, quase serem dependentes da criação. Yahweh, em contraste, ainda que imanente, era anterior e superior à criação (ponto que sempre foi destacado nos capítulos teologicamente polêmicos do Antigo Testamento). Salmos apresenta Yahweh como Criador e, portanto, autoridade suprema sobre a criação e sua história. Ele é o Senhor eterno de um mundo que firmou soberanamente no tempo e no espaço, em contraste com a origem (e existência) caótica e aleatória preconizada em outras religiões (93.1–5).
O pensamento de um longo processo de evolução das espécies nunca poderia ser desenvolvido a partir do livro de Salmos (nem do livro de Gênesis). Os salmistas, bem como outros autores do Antigo Testamento, tinham uma noção de tal modo elevada de Yahweh como Primeira Causa que pouco (se algum) destaque davam a causas secundárias. Ele é o criador do cosmos que a Ele pertence por direito de criação (24.1). Os peregrinos de Sião, refletindo Gênesis, cantavam que sua proteção vinha de Quem tinha direito de autor sobre tudo.
O hino anônimo ao final do saltério acrescenta à gama de obras divinas também o mar. A freqüência com que este era apresentado como um elemento caótico e descontrolado, nos próprios Salmos (cf. 93.3,4) e na literatura poética do Oriente Médio antigo, ressalta quão significativa era a associação do tremendo poder de Yahweh com idéias como ―auxílio‖ e ―esperança‖, que o poeta desconhecido vinculava ao relacionamento com o fiel Deus de Jacó. Davi vai buscar no relato da criação a referência à lua e às estrelas – estas mencionadas quase casualmente em Gênesis 1. A importância desses astros como divindades, no Oriente Médio antigo, torna ainda mais dramática a afirmação de que os céus são ―obra dos teus dedos‖. A linguagem antropomórfica completa o retrato de um Deus gloriosamente transcendente e superior a Sua criação. Interessantemente, o verbo usado em relação à lua e às estrelas é o verbmo Kon, o mesmo usado para o “mundo” no salmo 93, mencionado acima.
A atividade criadora é estendida ao sol no salmo 19. O versículo 2 [1] fala do céu como testemunhas da glória de Yahweh e de sua capacidade criativa. Nesse contexto, o sol é destacado por ser o astro principal, mas também por uma razão polêmica. Adorado em todo o Oriente Médio e, particularmente, no Egito, como fonte de vida e divindade-mor, o sol é apenas cumpridor do projeto de Yahweh, que o capacitara (em seu poder e sua regularidade) a assim agir como instrumento de Sua glória. O salmo 95.5 focaliza o mar e a terra seca (novamente aludindo a Gênesis 1) como parte da atividade criadora de Deus. É relevante lembrar que o versículo anterior fala dos montes e das profundezas da terra como regiões em que o domínio de Yahweh se faz presente. Pode haver aí mais do que simples geografia e geologia, pois ambos eram concebidos por nações vizinhas a Israel como habitações divinas – campos de ação de algumas divindades e inacessíveis a outras. O salmo 104,33 que celebra a majestade criadora e preservadora de Yahweh, destaca, a princípio, a soberania de Deus sobre o mundo como um ecossistema (v. 1-9)34 , relacionando depois os diversos níveis de vida nos quais a atividade criadora e sustentadora de Yahweh se manifesta (v. 10-30). Particularmente interessante é a menção ao leviatã. O ― leviatã era uma criatura temida pelos cananeus − uma espécie de Hidra de Lerna siro-palestina, com sete cabeças, mencionada no Épico de BaalEle aparece aqui como uma criatura de Yahweh, uma espécie de animal de estimação. É impossível ignorar a polêmica criacionista aqui. Yahweh, por fim, é apresentado como o criador do homem, Sua obra-prima (8.5, 6 [4, 5]). Devemos observar que o salmo 8 não é uma mera expressão de alegria pela beleza ou perfeição da natureza e do homem à parte do Deus que os criou. Fazer isso seria elevar homem e natureza ao nível de Deus – o que seria panteísmo. O salmo 8 pertence ao verdadeiro teísmo – considerando a maravilha da criação como razão para louvar um Deus que é perfeito e benevolente como Criador, Regente e Sustentador de toda a criação.36 O Salmo 8, constantemente aclamado como afirmação da criação do Homem, é, na verdade, uma comparação entre a raça humana e seres celestiais.37 Nenhum dos verbos utilizados nos relatos de Gênesis é encontrado no Salmo 8.
Yahweh como Criador de Israel
Uma certeza está presente em salmos de diversos tipos (hinos, lamentos da nação, louvores declarativos nacionais, cânticos de Sião e salmos reais): Israel possui para com Yahweh um relacionamento que o distingue das demais nações. Essa era a razão das reivindicações e das esperanças expressas nos poemas do saltério hebraico. Ainda que, como ocorre em nossos hinos pátrios, a nação seja idealizada e descrita em termos que superam em muito a realidade, o fato de Israel dever seu surgimento e existência como nação a Yahweh não é mera poesia, mas um fato que fica evidente em várias passagens, algumas das quais se reportam, como o evento histórico marcante, aos patriarcas, outras ao êxodo e outras à aliança davídica. O Salmo 105 é outro SLD que exorta a nação a ser grata a Yahweh, divulgar Sua grandeza e confiar nEle. Os versículos 6 a 11 destacam o evento-chave nesse relacionamento, a fidelíssima promessa a Abraão, Isaque e Jacó – Sua aliança perpétua e Seu juramento ligado à preservação do povo e à posse da terra. O êxodo do Egito (com os eventos relacionados, a doação da lei e instituição do culto), que foi o estabelecimento formal de Israel como nação,40 é celebrado nos versículos 23 a 43 do mesmo salmo, que termina sua resenha histórica com a conquista de Canaã e o cumprimento inicial da promessa feita aos patriarcas pelo Criador da nação.
Por fim, o Salmo 114 apresenta Israel como o santuário em que a presença santa e gloriosa de Yahweh se faria sentir na terra (v. 1,2). Este salmo ecoa as palavras de Moisés em Êxodo 15.17,18. Ali, a ênfase se acha na terra de Canaã como o local escolhido por Yahweh para Sua habitação entre os homens. Ambas passagens encontram sua base na aliança abraâmica e no relacionamento peculiar que Yahweh soberanamente escolheu estabelecer com aquele ramo da família semita (cf. Dt 7.7-11).
Deus como juiz universal
Yahweh, que é Rei sobre as nações, aparece como alguém que ama a justiça e a retidão em 33.5 e 99.4. Essas duas qualidades formam a base para Seu exercício de autoridade (97.2). Ele exerce Sua justiça em favor dos oprimidos e desvalidos (e.g. 113.7, 9; 146.7-9), no tempo e no espaço, embora a realidade muitas vezes contrarie tal promessa. Quatro elementos mitigam essa aparente contradição. Primeiramente, os salmos pertencem ao contexto da aliança com Israel. A natureza revelatória desse pacto concedia a Israel uma perspectiva e uma valorização da vida que não encontram paralelos no Oriente Médio antigo. Na história de Israel, as estéreis e os desprezados foram muitas vezes elementos-chave na realização dos propósitos de Yahweh. Em segundo lugar, os salmos são poemas escritos sobre generalizações e princípios idealizadores que revelam o caráter de Deus e Sua vontade geral, mais que instâncias específicas na história. Em terceiro lugar, como o princípio operacional de Yahweh é ―terceirizar‖ Sua atividade (por isso o reino é chamado de ―mediatório‖), a administração dessa justiça depende de instrumentos falíveis, a quem Deus exorta e repreende quando deixam de cumprir seu papel (cf. Sl 82). Por fim, o anseio expresso no Salmo 96.10-13 demonstra que a justiça eventualmente será vindicada quando o Supremo Juiz intervier na história humana para efetivamente implantar Seu reino em toda a sua plenitude.
Deus como juiz de Israel
Deus, como justo Juiz, executa (ou executará, escatologicamente) sentenças contra os inimigos de Seu povo. Um exemplo disso se acha nos cânticos de Sião, como o Salmo 46.8,9, que retrata a vitória final e o estabelecimento definitivo da paz, de que as vitórias históricas de Israel eram apenas um prenúncio, e o Salmo 48.4-6, que retrata poeticamente a grande conflagração final em que, por amor a Jerusalém, Yahweh intervirá para cumprir terminalmente Suas promessas pactuais (cf. Zc 14). A soberania de Yahweh em exercitar Sua justiça em favor de Seu povo se vê no Salmo 75.3. Os servos de Deus que sintam o desapontamento e o peso da injustiça humana podem se consolar com a realidade de que haverá um ajuste divino de contas (cf. também 59.5-8; 83.1-18; 78.9-31; 106.13-42). É necessário lembrar, como o Salmo 78 aponta, que essas intervenções judiciais de Yahweh em favor de Israel podiam ser suspendidas por causa da infidelidade pactual da nação.