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A Teologia do livro de Rute

Antes, leia o post Rute – Introdução.

A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Yahweh é soberano

O princípio teológico subjacente ao livro de Rute é o desenrolar do propósito soberano de Deus por meio de instrumentos humanos.6 Isso é feito de modo diferente de outros livros do Antigo Testamento, em que Yahweh intervém mais abertamente por meio de sonhos, declarações proféticas, aparições ou atos milagrosos. O paralelo mais notável é o livro de Ester, em que o nome de Deus sequer é mencionado. Em Rute, a soberania de Yahweh é ressaltada por sua presença nas duas breves orações contidas no capítulo 2, nas quais Boaz expressa o desfecho do livro em relação a Rute, reivindicando-o de Yahweh (2.12), e Noemi o faz em relação a Boaz (2.20). Outros episódios que sugerem a soberania de Yahweh são a morte dos filhos de Noemi, que fornecem a Rute a oportunidade de conhecer pessoalmente Yahweh como o seu Deus, a menção da casualidade humana do encontro de Rute e Boaz, um notável artifício literário do autor, destinado a produzir no leitor a sensação inversa, causalidade divina, e a reversão da sorte de Noemi e Rute, da viuvez e esterilidade em Moabe para a vida em família e a concepção (1.4, 5 e 4.13-15).

Em Rute, Yahweh intervém soberanamente para levar adiante a promessa feita a Abraão, a saber, de lhe constituir uma numerosa descendência (Gn 12.2), promessa que foi ampliada na bênção de Jacó a Judá, de cuja família viria o cetro sobre Israel (Gn 49.10). A genealogia no final do livro sutilmente liga as alianças abraâmica e davídica como a indicar que Yahweh soberanamente interveio aqui como no caso de Judá e Tamar, de cuja união surgiu a mais importante família em Israel.

Yahweh é misericordioso

Constable sugeriu de modo sucinto que o livro de Rute mostra a preferência divina de trabalhar em indivíduos e por meio deles, os quais outras pessoas considerariam material improvável.7 Rute é a epítome dessa situação, pois, além de mulher, é viúva, não tem filhos e é moabita! Estava assim excluída da participação na aliança, segundo a lei de Moisés, e sem quaisquer perspectivas humanas, como a própria Noemi quis fazêla perceber. A experiência de Rute demonstra que Yahweh sempre esteve disposto a receber quem se achegasse em fé evidenciada por compromisso, a despeito de sua origem étnica ou religiosa. Quem se aproxima de Yahweh como crente, nEle encontrará aceitação e realização. A misericórdia de Yahweh demonstra-se no conceito de redenção, pelo qual os carentes e desprotegidos vinham a desfrutar os recursos e a proteção de um parente, alguém que tivesse amor ao próximo e lealdade à aliança suficientes para motivá-lo a uma ação resgatadora. A esse parente dava-se o nome de לֵואֹג ] gôʾēl], (―resgatador‖), e a atividade de Boaz, no livro de Rute, ilustra a extensão da divina redenção (ou resgate) àqueles que, como Rute, ―que outrora não [eram] povo, e agora [são] povo de Deus‖ (1 Pe 2.10).

A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

A permissão do mal

A fome, enviada por Yahweh como disciplina contra Seu povo, é o elemento de tragédia que Ele utiliza para abrir as comportas de Sua graça. Igualmente, as mortes do marido e filhos são instrumentos para que Noemi venha a conhecer o verdadeiro significado da plenitude (cf. 1.20, 21). Em escala menor, a falta de compromisso do resgatador mais próximo é um mal que culmina com a perfeita solução para os problemas de Noemi e Rute, o descanso verdadeiro na provisão de Yahweh.

A promessa/ação de julgar o mal

Esta linha de ação não se apresenta no livro de Rute, exceto talvez na disciplina nacional mencionada em 1.1. Alguns expositores preferem estender essa disciplina às mortes de Elimeleque e seus filhos, mas o texto não oferece sustento a essa tese. É fato que a tradição judaica considera a morte dos rapazes uma punição por ter deixado Judá,8 mas tal razão não encontra eco na teologia mosaica. Uma ligeira possibilidade de significado judicial na morte de Malom e Quiliom acha-se em Deuteronômio 4.27.

A libertação do mal por meio de uma semente escolhida

Boaz é o instrumento usado para esse resgate, seguindo o padrão milenar do levirato (do latim levir, ―cunhado), em que a família era preservada pela união matrimonial de um irmão do morto com a cunhada. Esse costume, já conhecido na era patriarcal (cf. Gn 38), foi ampliado em Israel para incluir a posse da terra (Dt 25; Lv 25). O livro de Rute apresenta um aspecto mais pessoal e feminista da questão, trazendo a lume o resgate de uma existência de futilidade e frustração pessoal e social na vida de Noemi e Rute para uma vida de descanso (esta deveria ser a tradução da palavra tanto em 1.9, em que a ERA traz ―sejais felizes‖, quanto em 3.1 [heb. mānôaḥ], em que a ERA traz ―lar‖). Embora o paralelo não seja absoluto, há uma semelhança intrigante com a observação de Paulo em relação às mulheres cristãs serem ―salvas‖ pela geração de filhos que venham a ser bons cristãos (1 Tm 2.15).

O decreto de abençoar os eleitos

A soberana (e incógnita) atuação de Yahweh transforma a vida de uma mulher desiludida e desamparada em canal de bênção para toda a nação pactual (evidente na genealogia davídica, ao fim do livro). Rute edifica sobre as promessas abraâmicas de uma grande nação e de que reis viriam da semente de Sara. Boaz e Rute, especialmente focalizados em relação à bênção de Yahweh, são os canais pelos quais Noemi fora abençoada com o descanso e a plenitude personificados em Obede (4.15).

ARGUMENTO BÁSICO

O propósito do livro é demonstrar a soberana fidelidade de Yahweh a Suas promessas de bênção à medida que Ele, por meio da fé e da lealdade pactual de dois heróis improváveis, transforma a tragédia individual e familiar em bênção nacional de que o povo tanto carecia. Nesse sentido, o livro servia como motivação para a fé e a dependência entre os israelitas. O livro é estruturado de tal modo que pode ser esboçado de acordo com cada um de seus personagens principais, ou até mesmo de acordo com vários personagens em contraponto. Embora Rute, em certo sentido, seja o personagem principal, a frase-chave do livro (4.17) relaciona o ato generoso de Deus a Noemi, cuja tragédia original precipitou toda a história. A primeira parte abre-se com a ameaça da fome pairando sobre Israel, provavelmente em um dos ciclos de desobediência − disciplina − desafogo, típicos do período (e do livro) dos juízes. A migração era um recurso bastante comum (cf. os três patriarcas), e Moabe ainda não se tornara o inimigo ferrenho condenado pelos profetas.

A história de Elimeleque e sua família, no entanto, tem um lado sombrio ao indicar que o Deus de cuja ira a família foge é ainda mais temível do que se pode supor, pois Suas maldições se estendem além das fronteiras da terra onde Seu povo habita. Morte prematura e esterilidade são sinais do desprazer divino em todo o Antigo Testamento. Não é à toa que Noemi se queixa de que a mão de Yahweh se voltou contra ela (1.13). Deixada apenas com suas duas noras sem filhos, Noemi se prepara para retornar a Belém, onde uma vez mais há fartura de pão (םֶחֶל ,leḥem), porque Yahweh visitou Seu povo em graça (1.6). Assim, o autor oferece indícios de que a fome anterior tinha sido uma visitação em ira, como também de que Seus propósitos estão sendo cumpridos nas esferas nacional e individual. Diante da alternativa de permanecer em casa e manter padrões sociais e religiosos conhecidos, Orfa abandona a lealdade prometida à sogra e escolhe o caminho mais fácil (1.15), ao passo que Rute, por amor a Noemi e Yahweh, opta pelo árduo caminho da pobreza, da viuvez e da solidão (1.8, 9) que a sogra lhe apresenta. Seu compromisso para com Noemi revela a profundidade de seu compromisso para com o Deus de Noemi (1.16-18). Apesar disso, a clara luz do amor de Rute não é suficiente para dissipar as sombras de rejeição que Noemi sente ter sofrido por parte de Yahweh (1.19-21). O autor acrescenta um raio literário de esperança que brevemente vara as nuvens do desespero de Noemi: sua chegada a Belém ―coincide‖ com o começo da colheita de cevada (meados de abril), um tempo de renovação e esperança para toda a comunidade, para a qual Noemi e Rute haviam se mudado (1.22).

Os raios ficam cada vez mais claros à medida que o autor apresenta Boaz, um homem de posses e de caráter, que também é parente de Elimeleque (2.1). Esta é mais uma colocação literária que oferece ao leitor um gostinho da provisão de Yahweh para com Noemi, que claramente se materializa quando Rute casualmente entrou justo na parte do campo de Boaz (2.3), depois de pedir à sogra licença para recolher espigas, conforme indicava a legislação mosaica (2.2). A provisão divina é exibida de forma ainda mais ampla na bondade de Boaz com Rute (2.8-16), oferecendo proteção (2.8, 9), encorajamento (2.11-13) e provisão especial (2.14-16). Suas palavras oferecem um contraste salutar para a lúgubre predição de Noemi em Moabe, e a sensação de solidariedade a que Rute passara a ter direito em virtude de seu compromisso com Yahweh como seu deus pessoal (cf. 1.16, 17). Quando o segundo capítulo termina, Rute acha-se empregada com todos os direitos e capaz de prover para si e para sua sogra também (2.17-23). Confrontada com tais evidências, o ceticismo de Noemi dá lugar ao júbilo e à esperança, especialmente à medida que a possibilidade de redenção desponta no horizonte (2.20). Sua fé em Yahweh retoma um pouco da vitalidade que outrora possuíra ao ver a tragédia transformada em triunfo. O terceiro capítulo contém a maior parte do elemento de suspense do livro, devido às muitas possibilidades de que o casamento, esperado e tramado, não viesse a acontecer. Noemi esperara até que a colheita tivesse terminado para aproveitar a oportunidade de confrontar Boaz com sua necessidade de redenção por meio do casamento levirato (3.1- 4). Embora não haja razões evidentes para que se duvide da nobreza das intenções de Noemi,9 o próprio contexto histórico em que o livro se insere sugere grande e grave perigo moral, uma vez que, naqueles dias, a imoralidade era endêmica em Israel. Os leitores precisam, por um momento, contentar-se com a descrição de Boaz como um gibbor hayil e esperar que Rute não reproduza o comportamento de sua ancestral, a filha mais velha de Ló.

À medida que a cena noturna se desenrola, de acordo com o plano de Noemi (3.6-9), o caráter de Rute é vindicado, e ela é identificada como uma eset hayil (3:11). Além disso, Boaz declara sua disposição de agir como resgatador (3.12, 13). Aqui o autor cria um belíssimo efeito literário usando a palavra hebraica kanap (asa), no pedido de Rute, ecoando assim o voto de proteção divina que Boaz proferira no capítulo 2, à luz da fé que Rute demonstrara em Yahweh (cf. 2.12). Superada a ameaça moral, um último obstáculo permanece diante de Noemi e Rute. Boaz, sério candidato ao título de solteirão mais cobiçado de Belém, não é seu parente mais próximo. O privilégio pertence, antes dele, a outro homem (3.12, 13). A cena noturna termina com Boaz mandando Rute de volta para a casa de sua sogra, cedo o suficiente para que a reputação de Rute não seja manchada (3.14) e com provisões suficientes para deixar seu compromisso evidente aos olhos de Noemi (3.15). Assim, Yahweh remove das mãos de Noemi as rédeas de seu destino, que ela tentara arrancar às mãos divinas. Ao final do capítulo, Rute compartilha com Noemi os eventos da noite, e a anciã expressa sua confiança de que a questão será resolvida de um ou de outro modo (3.16- 18).

O capítulo 4 oferece a protelada solução da trama, à medida que Boaz confronta seu parente com a necessidade existente (4.1-8). A maneira pela qual Boaz apresenta o caso trai um interesse pessoal, uma vez que ele alude primeiro à compra da terra de Elimeleque, uma proposta tentadora para qualquer israelita, tanto assim que o parente mais próximo se dispõe a aceitá-la (4.4). Isso levanta a questão do levirato, que era menos atraente em vista das responsabilidades adicionais e dos riscos que envolvia (por exemplo, problemas na futura partilha das terras; 4.5, 6). Uma vez que, de acordo com o costume da época, o ―contrato é assinado‖, Boaz anuncia publicamente sua decisão de desempenhar o papel do resgatador em ambas situações − compra da terra e casamento levirato (4.7-10). Assim, esse parágrafo espelha a cena inicial de Noemi, Rute e Orfa nas planícies de Moabe. Orfa e o parente anônimo optam pela via fácil do não compromisso e da vida sem fé, ao passo que Rute e Boaz escolhem o caminho mais árduo do compromisso e da dependência. As expectativas que tinham motivado Elimeleque a migrar e que haviam escapado a Noemi por toda sua vida – prole e prosperidade – são agora invocadas, por toda a comunidade, sobre Boaz e Rute (4.11, 12). O livro termina com a concretização das esperanças de Noemi por meio de Boaz e Rute (4.13-16). Suas palavras amarguradas, em Moabe, foram dramaticamente revertidas pelo Senhor (cf. 4.14, 15 e 1.12, 13); sua tragédia pessoal foi transformada em triunfo, mas isso é coisa pequena para o Senhor. O pequeno bebê, que se tornou a alegria de Noemi, seria parte do plano soberano de Yahweh de trazer a Israel o homem segundo Seu coração, o rei de que a teocracia em Israel sentira tanta falta durante os dias sombrios dos juízes.

Com esse propósito e de acordo com o voto expresso pelos anciãos, o autor apresenta a genealogia de Davi, começando com Perez, ancestral de Davi que também nascera de um ―casamento levirato. A bênção da redenção que o Messias traria já se fizera presente, em microcosmo, na história dos membros de Sua genealogia.

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