A proposição mencionada na página anterior fornece indícios quanto à teologia não apenas de 1 Samuel, mas de ambos volumes. Juntos, 1 e 2 Samuel servem para dar à nação, mais especificamente a seus líderes, uma visão apropriada da monarquia nos limites de sua categoria mais ampla, a teocracia. O conceito (várias vezes mencionado ou sugerido) de que o rei estava sujeito às estipulações da aliança, conforme interpretadas pelos profetas, indicava claramente que a monarquia nunca seria o último foro da vida israelita. A autoridade última e, conseqüentemente, a lealdade última cabiam sempre a Yahweh, e transferi-las para um rei humano era tão mau quanto oferecê-las a um deus pagão. Essa íntima ligação entre a idolatria do Estado e o paganismo pode ser vista em 1 Samuel 12. De outro lado, todo o livro de 1 Samuel conduz o leitor à direção da monarquia davídica como o agente escolhido por Yahweh para dar continuidade à teocracia (= soberania mediada) na história, seguindo as linhas prolepticamente traçadas no cântico de Ana – humildade e dependência de Yahweh trazem vitalidade e permanência, enquanto que a auto-suficiência condena os indivíduos e a nação ao fracasso.
A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS
É quase impossível deixar de perceber este tema nos livros de Samuel, e seus exemplos mais luminosos ocorrem no primeiro volume. A intervenção em favor de Ana e sua contínua fertilidade, depois de Samuel ter sido efetivamente dedicado a Yahweh, são o primeiro exemplo da capacidade divina de controlar a vitalidade do indivíduo em resposta à fé humilde. Talvez a demonstração mais dramática da soberania de Yahweh surja na narrativa da arca (1 Sm 4 – 6). Ao contrário do que pensam alguns comentaristas que a consideram uma narrativa isolada inserida ao acaso no texto, 9 essa divisão demonstra não só a superioridade de Yahweh sobre os deuses com quem Israel flertava (supondo que eles concediam vida melhor aos povos à volta), mas também a necessidade de uma atitude correta em relação ao culto em Israel. Yahweh soberanamente remove aqueles que se consideravam acima dos requisitos da lei (cf. 3.34; 4.10, 11), soberanamente humilha Dagom, lançando o ídolo por terra diante da arca da aliança e quebrando sua cabeça e mãos como sinal da impotência de Dagom diante de Yahweh, soberanamente pune os filisteus com uma praga devastadora, ensinando-os que Ele não é um mero amuleto ou fetiche a ser carregado como troféu de batalha, mas o verdadeiro Deus do universo. Ainda em Israel, essa soberania é apresentada no caso dos moradores de Bete-Semes e Quiriate-Jearim, em que os primeiros sofrem por sua atitude profana em relação à arca, e os últimos são abençoados por sua reverência.
A soberania divina é exercitada de acordo com as bênçãos e maldições estipuladas na aliança. O arrependimento nacional, sob a liderança de Samuel, trouxe a vitória (7.3-12) e o alívio (temporário) da opressão dos filisteus (7.13). O padrão operacional de Yahweh fica claro: O Deus soberano abençoará a nação enquanto esta permanecer humilde e for conduzida por um indivíduo escolhido por Ele. Mesmo quando o povo interveio com seu pedido de um rei, a soberania de Yahweh superou a vontade humana, demonstrando Seu desprazer em relação à visão antropocêntrica dos israelitas, mas suprindo um líder que haveria de comprovar a verdade de Sua advertência (1 Sm 8; 12.18). Os dois incidentes mais conhecidos do livro também apontam para a soberania de Yahweh: o combate entre Davi e Golias (17) e a entrevista de Saul com a médium de En-Dor (28). No primeiro incidente, a confiança em Yahweh é soberanamente recompensada com a vitória, a despeito da força e experiência militar do adversário. No segundo, Deus usa Samuel para demonstrar a inutilidade dos esforços desesperados de Saul para escapar ao soberano veredicto divino de tirar de sua dinastia o trono de Israel.
Sua lealdade pactual
Embora a palavra ḥeseḏ (“amor ou lealdade pactual”) seja usada apenas uma vez no livro, com referência a Yahweh (20.14), o conceito permeia o livro. Aqueles que se humilham, os que confiam em Yahweh para a realização do impossível, e aqueles que se alinham com o ungido de Yahweh são objeto de Seu hesed. Ana, o povo de QuiriateJearim, Samuel, Saul (no início do reinado), Jônatas e Abigail são exemplos marcantes. A lealdade pactual, todavia, opera nos dois sentidos. As maldições sobrevêm aos que arrogantemente rejeitam a direção de Yahweh em suas vidas. Os exemplos principais são Eli e seus filhos, os moradores de Bete-Semes, Saul (do meio para o fim do reinado) e Nabal. Jônatas é a aparente contradição. Apesar de aparecer no livro como a epítome da lealdade, ele encontra uma morte trágica em Gilboa. A razão de tal fato se acha em outro princípio relacionado à aliança – o da solidariedade corporativa. A rejeição pessoal de Saul também significou a rejeição corporativa de sua família. Jônatas anteviu esse fato, mas não previu que seu filho, e não ele mesmo, seria o beneficiário da lealdade pactual de Davi (20.12-15; 41-42). Esse conceito da lealdade pactual de Deus tem por referencial não apenas a aliança deuteronômica, mas também a abraâmica, que subjaz o propósito aparente do autor em descrever o funcionamento da aliança deuteronômica na história da nação.
Sua imutabilidade
Primeiro Samuel é um campo de batalha para a doutrina da imutabilidade de Deus. O conceito aparece, primeiramente, nas narrativas da transição teocrática nos capítulos 8 a 12, em que o porta-voz de Yahweh parece vacilar entre a aprovação e a rejeição da monarquia. Essa aparente contradição foi tratada anteriormente (pp. 259, 260) e aqui basta mencioná-la. A rejeição divina não relacionava-se ao conceito de monarquia em si (uma antiga expectativa israelita, cf. Gn 49.10), mas ao conceito popular de um rei fac totum, que viesse a ser a garantia humana de uma vida segura para Israel, em Canaã. A monarquia seria o instrumento escolhido, mas a fonte das bênçãos da aliança só poderia ser o doador da aliança. Outra passagem controvertida é o relato, no capítulo 15, da rejeição de Saul, em que o autor parece afirmar, com um canto da boca, que Deus mudará de idéia em relação à escolha de Saul como rei (15.10, 35), e, com o outro, parece afirmar categoricamente a imutabilidade divina (15.29). Essa aparente contradição é explicada satisfatoriamente pelo uso de linguagem antropomórfica.11A mudança em um procedimento visível é explicada como uma mudança emocional na pessoa de Deus, quando, na realidade, é o desenvolvimento de Seu propósito imutável que incluía novos meios, instrumentos e direções, dando assim ao autor humano das Escrituras a impressão de que o plano de Deus havia sido alterado.
Deus e o incidente de En-Dor
Este famoso incidente é uma constante fonte de perplexidade para cristãos e opositores do cristianismo. Estes últimos buscam nele apoio para práticas como mediunismo e incorporação de espíritos (o chanelling da Nova Era), e ignoram as proibições claras contra tais práticas no restante da Escritura. Os primeiros procuram eliminar a aparição real de Samuel, argumentando que não há uma identificação positiva de Samuel e dando a entender que este incidente é apenas um caso de charlatanismo por parte da médium e de equívoco da parte de Saul.
Tais abordagens ignoram, em primeiro lugar, o artifício literário do autor em pôr Saul à busca de Samuel, no início e no fim de sua carreira. Dessa maneira, ele espera impressionar seus leitores com a rejeição total de Saul. A menção ao manto (28.14) e a referência ao reino ser arrancado das mãos de Saul (28.17) são alusões claras a 1 Samuel 15.27, 28, ocasião em que a fatídica promessa fora feita. A mensagem desta perícope é clara: Saul já passou do ponto em que o retorno é possível e, assim, não há mais esperança para ele. Nem os vivos nem os mortos podem ajudá-lo a escapar do juízo de Yahweh. Esta passagem indica que a obediência a Deus não pode ser determinada pela conveniência humana: os que escolhem adiar a obediência à espera de uma ocasião mais favorável podem vir a lamentar para sempre tal escolha.
A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
As quatro linhas de ação de Deus na história, por meio das quais Ele opera para restabelecer Sua soberania mediada sobre o universo, estão presentes em 1 Samuel pelo menos uma vez, e a maioria se manifesta mais de uma vez.
O primeiro exemplo desta linha de atividade de Deus é a conduta escandalosa dos filhos de Eli (2.12-17), cuja distorção do culto para fins egoístas, quando a arca é capturada pelos filisteus, por fim se volta contra eles mesmos. É possível dizer o mesmo dos filhos de Samuel, cuja ética distorcida e indulgente contrasta dramaticamente com a conduta inatacável de seu pai como juiz (8.2, 3; cf. 12.3). Há ainda, é claro, Saul e sua conduta progressivamente rebelde, contra Yahweh e as exigências de Sua aliança (13.7- 14; 15.1-23), e maldosa, contra Davi, seu sucessor escolhido por Deus. O exemplo mais chocante dessa ação de Deus é a permissão para que Samuel retorne dentre os mortos para confirmar a rejeição definitiva de Saul (cap. 28).
Estas promessas, em termos de exaltação dos humildes e queda dos arrogantes, estão contidas no cântico de Ana (2.1-10). Em todo o livro, encontramos o tema na ameaça profética contra a casa de Eli (2.27-36) e em seu macabro cumprimento (4.1-12). O mesmo tema resplandece no triunfo da arca sobre os deuses dos filisteus (caps. 4–6), na execução de Agague por Samuel (15.32, 33), na remoção do Espírito de Yahweh de Saul devido a sua rebeldia (16.14), e na derrota final do rei pelas mãos dos filisteus (cap. 31).
Esta linha de ação divina tem seu primeiro exemplo na narrativa do nascimento de Samuel e em sua gradativa capacitação para servir como o agente divino de libertação (caps. 1–3, 7). Saul desperdiça sua oportunidade de tornar-se o instrumento escolhido por Deus, a despeito de agir assim por algum tempo (caps. 11, 14–15 [em que, todavia, Jônatas desempenha o papel mais positivo]). Davi torna-se a semente escolhida, e, após poucos parágrafos, o autor demonstra a disposição do jovem pastor em cumprir tal papel como também sua capacidade de agir como libertador (cap. 17; cf. 18.7, 14). A despeito de falhas éticas, que o autor não faz qualquer questão de esconder, Davi permanece como o principal libertador de Israel, à medida que Saul vai desaparecendo de cena devido à sua conduta autodestrutiva. Quando o livro termina, com a família de Saul dizimada, Davi aparece como a única alternativa para que Israel sobreviva como nação livre.
Esta quarta linha de ação divina não é muito proeminente em 1 Samuel, pois sua aparição aguarda a plena manifestação de Davi como o regente escolhido de Yahweh, o rei cuja casa Ele promete estabelecer para sempre. Apesar disso, há indícios presentes em 2.9, 10, quando Ana antevê a bênção de Yahweh sobre os humildes e a escolha de um Messias, como também na promessa do profeta anônimo a Eli (2.35), em que Yahweh promete abençoar e estabelecer a casa de Seu sacerdote fiel (promessa cumprida em Zadoque). Duas outras linhas de ação divina aparecem com importância no desenvolvimento do livro e, embora possam ser encaixadas nas quatro linhas tradicionais, contribuem de maneira especial para a mensagem do livro e merecem ser destacadas.
Esta atividade, que já foi considerada anteriormente (p. 257), é esboçada no cântico de Ana (2.1-10). Em todo o livro, o destino dos pobres, dos desprezados, dos humilhados e dos amargurados é modificado de acordo com sua fidelidade à aliança, que é prova de sua fé em Yahweh. Davi, obviamente, é o exemplo maior de tal atividade. Sua constante recusa em tomar a história nas próprias mãos (eliminando Saul) demonstra sua fé na promessa divina feita por intermédio de Samuel, bem como na capacidade divina de estabelecê-lo como regente da monarquia teocrática que seria o meio de Yahweh dirigir Seu povo, Israel.
Não há dúvida na mente deste autor de que o plano de Yahweh para a teocracia incluía, desde o princípio, a monarquia. As provisões mosaicas (Dt 17) o indicam, e o cântico profético de Ana revela o que pode ter sido a sensação predominante entre o povo durante o período dos juízes – Israel precisa de um rei! É desnecessário postular inserções editoriais ou autoria recente para o cântico. Uma mulher guiada pelo Espírito foi usada para expressar uma verdade divina − que Deus realizaria, no futuro, maravilhas em favor de Seu povo. A questão de Ana ter composto o salmo ou ter apenas recitado um salmo já existente é totalmente irrelevante.13 O que o autor do livro quer comunicar é que Deus tinha Seu plano traçado, e a estratégia correta para realizá-lo. Por duas vezes, entretanto, Yahweh traria Seu povo ao ponto de total quebrantamento e quase aniquilação, em que Israel reconheceria a necessidade de se humilhar perante Ele, de se comprometer com Ele (este é um dos propósitos da narrativa da arca), e de depender de Sua superioridade sobre outros deuses (7.2-4) e de Sua soberania sobre o povo da aliança (isto é feito por meio dos discursos de Samuel sobre o tipo de monarquia que Israel teria e deveria ter).
ARGUMENTO BÁSICO
O livro começa com uma cena típica da vida israelita − a peregrinação anual ao tabernáculo, naquela ocasião situado em Siló. A apresentação de Elcana e sua família serve para indicar algumas das condições existentes. Havia uma medida de piedade e de conformidade às exigências da aliança mosaica, mas também havia evidência de descaso com a mesma, como a bigamia de Elcana e a esterilidade de Ana, uma sugestão sutil de que Israel não desfrutava a plenitude das bênçãos pactuais prometidas por Yahweh. Nessa ocasião em particular (c. 1100 a.C., por volta do tempo da opressão amonita na Transjordânia), o juizado e o sacerdócio estavam concentrados na mesma família. Eli era o juiz e seus filhos ministravam como sacerdotes. A corrupção espiritual e moral da família sacerdotal contrasta com a piedade demonstrada por Ana. Esse contraste abre caminho para a dramática convulsão que Israel experimentaria durante os anos finais do juizado de Eli e a mocidade de Samuel. Os filisteus em breve levariam Israel à beira da ruína, mas também ao arrependimento e ao reavivamento. Os primeiros sete capítulos de 1 Samuel descrevem os preparativos divinos para o estabelecimento da monarquia como o instrumento da autoridade teocrática de Yahweh, retratando a provisão de um genuíno líder espiritual que guiaria a nação de volta a Deus e que a levaria ao longo da transição de uma desconjuntada confederação tribal a uma monarquia centralizada. Esse líder viria de uma família levítica (cf. 1 Cr 6.22-26) que vivia na região montanhosa de Efraim. Antes que isso pudesse ser realizado, era necessário descartar a liderança corrupta que empurrava Israel em direção ao abismo. Da angústia e frustração de uma mulher estéril, Yahweh proveu o filho cujo nascimento assinalava o início de Sua intervenção. O cântico de louvor de Ana, em resposta a sua petição, ressaltou o tema da obra de Deus durante o período histórico coberto pelo livro – o uso dos humildes para desarraigar os orgulhosos, bem como a recompensa dos obedientes em contraste com a ruína dos arrogantes (2.1-10). O jovem Samuel é contrastado com os indignos Hofni e Finéias pelo fato de ministrar ao Senhor, enquanto os dois irmãos ministram a si mesmos (2.11-17); além disso, no fato de que Deus deixa de comunicar-se com os dois desajustados, ao passo que fala diretamente com Samuel (3.1-14), que se torna nacionalmente reconhecido como um homem de Deus (3.19-21), ao passo que os filhos de Eli são objeto da ira de Yahweh e têm suas mortes profetizadas como castigo divino por seus pecados e em conseqüência direta da apatia espiritual de seu pai (2.27-36).
A essa altura, os filisteus começaram a ameaçar a existência de Israel como nação. A despeito dos atos heróicos de Sansão (c. 1070-1050 a.C.), a opressão, que começou por volta de 1090 a.C., cresceu em intensidade e chegou ao ponto de ebulição quando a arca do pacto foi capturada (cap. 4). Essa captura foi claramente uma lição de que Yahweh e a adoração a Ele não podem ser tratados apenas como um fetiche ou talismã e ser desprezados e ignorados a nosso bel-prazer, ou invocados apenas quando surge uma crise. Assim, o ministério público de Samuel como juiz-sacerdote começou em uma época totalmente desfavorável. Com a súbita eliminação tanto do juiz quanto dos sacerdotes, a pergunta perplexa da jovem viúva pairava como uma sombra sobre Israel: Onde está a glória?. Os capítulos 5 e 6 respondem essa pergunta, demonstrando aos filisteus que sua vitória retumbante não se devera à superioridade de seus deuses, mas à soberana permissão de Yahweh. Esses capítulos foram incluídos no livro como a interpretação que o próprio autor fazia da história, indicando que Yahweh ainda era capaz de cumprir Suas promessas pactuais e garantir a sobrevivência e a segurança de Israel, desde que a nação se conformasse aos Seus termos. A narrativa da maldição contra os filisteus e sua percepção da superioridade de Yahweh sobre Dagom ressalta a necessidade que os israelitas tinham de dar atenção adequada a Yahweh e sua adoração, tão grosseiramente negligenciada durante o período dos juízes. É difícil evitar uma relação entre a ―simpatia‖ empregada pelos filisteus (6.1- 12) e a frustrada tentativa de conduzir a arca a Jerusalém, no reinado de Davi, após duas gerações (2 Sm 6.1-9; observar a semelhança no método de transporte). Percebe-se o contraste entre as atitudes errada e correta nos destinos de Bete-Semes, cujos moradores violam a arca e são punidos (6.18-20), e da casa de Abinadabe, que é abençoada (6.21– 7.1; cf. 2 Sm 6.3).
A divisão seguinte descreve as provisões temporárias de livramento e disciplina por meio das quais Yahweh tencionava demonstrar a Israel que a presença de um rei poderia trazer o desastre definitivo a Israel caso o monarca não satisfizesse as expectativas divinas (7.2–15.35). Inicialmente, Yahweh supriu livramento temporário dos inimigos mais prementes, os filisteus, e ofereceu orientação na pessoa de Samuel, que haveria de conduzir a nação na escolha de seu primeiro rei (7.2–10.8). A primeira medida de Samuel como juiz é reconduzir Israel à lealdade a Yahweh (7.2- 6). A isso seguiu-se um milagroso triunfo sobre os filisteus, que os humilhou de tal modo que, por toda uma geração, os israelitas tiveram descanso de seus inimigos a oeste (7.7-14). O ministério de Samuel concentrou-se primariamente na área central de Israel, em um circuito que incluía Betel, Mizpá, Ramá e Gilgal (7.15-17). Alguns anos depois do grande triunfo,14 quando Samuel já transferira parte de seus deveres judiciais para seus filhos, Joel e Abias, o descontentamento popular com o desempenho destes levou a nação a solicitar um rei (8.1-4). O que Samuel percebeu como rejeição pessoal, Deus rotulou como rejeição nacional de Sua autoridade imediata sobre a nação e, ainda assim, ordenou ao venerando juiz que acedesse ao pedido do povo (8.5-22), mas não sem antes oferecer à nação uma visão realista da vida sob o domínio de um monarca humano. A decisão soberana de Deus incluía não apenas Sua resolução prévia de estabelecer a monarquia como canal da teocracia, mas também estabelecê-la de tal modo que Israel provasse fracasso e juízo antes de conhecer graça e glória. Os capítulos seguintes demonstram isso claramente. A subdivisão seguinte delineia a escolha de Saul, um benjamita, como o primeiro rei de Israel. Saul é uma pessoa simples desde o princípio, um jovem fazendeiro procurando jumentas perdidas. No entanto, Yahweh soberanamente o conduz a Samuel e leva o juiz a ungir o jovem fazendeiro como rei (9.1–10.8). Sinais confirmatórios são oferecidos e a missão do primeiro rei é delineada – livrará o meu povo da mão dos filisteus (9.16). Isso significa que os inimigos a oeste estavam novamente reunindo suas forças para atacar Israel; indica também a dramática medida do fracasso final de Saul (cf. cap. 31).
A escolha de Samuel, confirmada pelos sinais prometidos e por Urim e Tumim (10.9- 22), recebeu aclamação popular, mas com certa dose de ceticismo. O novo rei e o povo foram confrontados com os regulamentos de Yahweh, que Samuel colocou diante do Senhor em Mispá ([novo local do Tabernáculo?]; 10.26). A aprovação de Saul seria conquistada a duras penas, enfrentando e derrotando os amonitas, que ameaçavam Jabes-Gileade, na Transjordânia. A liderança carismática foi demonstrada em sua convocação a todas as tribos (11.6-8), e em sua capacidade militar demonstrada em sua contundente vitória sobre os amonitas (11.9-11). Sua atitude humilde demonstrou-se na maneira como ele impediu que o povo vingasse a honra do rei contra seus detratores (11.12, 13). Assim, percebendo que a posição de Saul como rei estava segura, Samuel convoca a nação a colocar essa nova entidade civil sob a autoridade real de Yahweh sobre Israel (11.14–12.25). A escolha de Gilgal para essa cerimônia não foi acidente, mas uma tentativa deliberada de relacionar a nova fase da história de Israel às cerimônias de renovação da aliança ao tempo de Josué (Js 5.1-12) e no começo do período dos juízes (Jz 2.1-5). O discurso de despedida de Samuel invoca o Senhor como testemunha perante o povo quanto à sua integridade como guardião da aliança (12.1-5), descreve os atos de lealdade pactual de Yahweh com Seu povo (12.6-11) e critica o povo por sua miopia espiritual em exigir um rei e relegar Yahweh a um papel secundário (12.12-17). Acrescentando ação à palavra, ele pede ao Senhor que confirme suas palavras, o que Deus faz enviando chuva em meio à estação de seca (12.18, 19). A cerimônia termina com a promessa de Samuel de continuar cuidando da nação e da bênção do Senhor, desde que o povo e seu rei permaneçam fiéis à aliança. Caso isso não ocorra, ambos – povo e rei – serão destruídos (12.20-25). A última seção dessa divisão revela o fracasso de Saul, pois não se adequou aos padrões de obediência e compromisso exigidos dele. O resultado disso foi a rejeição de sua linhagem (13.1–15.35). Os erros de Saul incluíram sua usurpação religiosa ao assumir prerrogativas sacerdotais (13.5-15), diante da demora de Samuel e da crescente pressão dos filisteus. Saul foi culpado do mesmo tipo de superstição que os israelitas tinham exibido ao tempo dos filhos de Eli, talvez por ter sido influenciado por conceitos de monarquia sacramental, bastante comuns no antigo Oriente Médio. A situação lastimável de Israel, despreparado para o combate corpo a corpo, por falta de tecnologia em ferro, e desmoralizado pelas incursões de pilhagem dos filisteus (13.16-22), só recebe alívio por meio da fé ousada de Jônatas, herdeiro presumido de Saul (13.23–14.14), que se tornou o instrumento pelo qual o santo terror de Yahweh se apoderou do exército dos filisteus, permitindo que os israelitas devastassem seus inimigos (14.15-23). As deficiências de Saul, no entanto, ameaçaram até mesmo seu filho em seu momento de maior triunfo, pois, em sua ansiedade pela vitória, o rei fez um voto precipitado que prejudicou a eficácia de seu exército, colocou em perigo a vida de seu herdeiro e provocou o pecado do povo (14.24-46). Essa subseção oferece um resumo histórico dos feitos de Saul como guerreiro (14.47–48), informações sobre sua família e sobre a incipiente organização de seu reino (14.49-51). A última gota d‘água para Saul foi seu desafio ao םֶ רֶח) ḥerem) imposto por Yahweh sobre os amalequitas (15.1-9). Ao ser confrontado por Yahweh, em relação ao fracasso de Saul, Samuel vacilou quando recebeu a ordem de anunciar a rejeição do monarca diante do desprazer de Yahweh, mas finalmente acedeu (15.10-23). Samuel disse que a obediência contrariada de Saul era equivalente à rebelião, que ele igualou às práticas pagãs. A rejeição das ordens de Yahweh significava a rejeição de Saul como rei. Embora um adiamento tivesse sido obtido, em vista de um arrependimento que era ao mesmo tempo sincero, superficial e tardio, a posição privilegiada de Saul como ungido do Senhor, dotado do Espírito Santo, teve um fim melancólico.
A terceira divisão do livro descreve os preparativos divinos para o estabelecimento da monarquia por meio da mudança de foco de Saul para um outro homem ungido, Davi, a quem Yahweh treinaria em dependência e humildade a fim de fazer dele um homem segundo Seu coração (16.1–26.25). Duas vinhetas delineiam o caráter do jovem selecionado para ocupar o lugar de Saul, como rei de Israel. Ele primeiro aparece como o menos provável devido aos padrões mundanos, sendo, no entanto, eleito por Deus com fundamento em atributos espirituais invisíveis (16.1-13). Essa unção e capacitação são contrastadas com a deterioração espiritual e emocional de Saul, à medida que o Espírito de Yahweh se afasta do pusilânime monarca para repousar sobre o íntegro rapaz (16.13, 14). Ironicamente, o último é chamado ao lado do primeiro para prover alívio das crises de desespero e paranóia que afligiam o rei (16.15-23). A imagem que se comunica de Davi é o de uma pessoa sensível e submissa. A segunda vinheta apresenta Davi, em uma hora bastante crítica da história de Israel, como um jovem homem de fé, confrontando o experiente campeão filisteu, Golias, e derrotando um adversário muito mais forte por amor a Yahweh e com base no Nome que Golias havia profanado (17.1-58). Sua vitória nesse combate individual representativo permitiu que Israel, uma vez mais, repelisse a ameaça dos filisteus e fez de Davi um herói nacional. Isso aproximou-o ainda mais de Saul, que aparentemente o dispensara de seus serviços musicais durante a campanha militar (cf. 16.21 e 17.53-58). Essa vinheta apresentou Davi como um indivíduo corajoso e confiante, zeloso pela reputação de Yahweh. A divisão seguinte retrata Davi em uma situação diferente, na maioria das vezes tentando escapar do traiçoeiro Saul, desfrutando uma amizade pactual com Jônatas, o herdeiro presumido de Saul, vários anos mais velho do que ele. Também apresenta Davi como líder militar eficiente, capaz de atrair seguidores, de aceitar repreensões, de perdoar o mal e, sobretudo, como um homem que permitia que Yahweh operasse em Seu próprio calendário, mostrando, ao mesmo tempo, graça e generosidade para com seu inimigo declarado. A presença de Davi na corte de Saul provocou duas reações totalmente diversas. O herdeiro do trono – Jônatas – provavelmente já com cerca de 40 anos nessa ocasião,15 claramente reconheceu Davi como futuro rei e procurou o bem-estar futuro de Davi sob a forma de uma aliança, que aparentemente garantia sua bondade a Davi no período entre a unção e a coroação (cf. 18.1-4). A aclamação popular a Davi provocou o ciúme de Saul (18.5-9). O ciúme progrediu para uma tentativa de homicídio (18.10, 11), que deu lugar a subterfúgios e traição (18.12–19.17). As intenções assassinas de Saul foram evitadas por seus filhos, Jônatas e Mical – ele por meio de uma confrontação honesta, e ela por uma mentira clara. Emerge daí o padrão de que qualquer tentativa de eliminar Davi falhará, uma vez que o próprio Yahweh o conduz em sucesso (18.28-30). A vida na corte de Saul tornara-se impossível para Davi, como Jônatas percebeu com grande tristeza (20.1-4). Depois de Saul ter abusado verbalmente de Jônatas e até ter tentado matá-lo por tomar o partido de Davi (20.5-34), os dois amigos despedem-se em grande tristeza, mas também com o compromisso mútuo de manter os laços de lealdade pactual (20.35-42). Davi, o herói, será, a partir desse momento, Davi, o fugitivo. A fuga de Davi começa em Nobe, onde ele enganosamente obtém alimento e a espada de Golias; apesar disso, com o fim de ensinar-lhe uma lição de dependência, o Senhor permitiu que um dos servos de Saul testemunhasse o incidente (21.1-9). Em seu medo, Davi fugiu para a terra dos filisteus, buscando refúgio com Aquis, rei de Gate. Ali descobre que sua reputação o havia precedido [evidentemente o serviço de inteligência dos filisteus já identificara Davi como um líder emergente em Israel] (21.10, 11), e uma vez mais usa de mentira para escapar a uma situação perigosa (21.12-15). Mesmo o homem segundo o coração de Deus precisa tempo para ter suas falhas de caráter expostas e corrigidas.
O próximo passo de Davi foi retornar a Judá, para a caverna de Adulão, aparentemente um refúgio natural bem protegido, próximo a Queila. Ali sua família reuniu-se a ele, bem como outros homens perseguidos por Saul. A presença do profeta de Deus sugere que um movimento organizado pró-Davi estava em formação em Israel. O bando, que crescia, migrou para Moabe, onde Davi deixou seus pais para protegê-los de retaliações de Saul, e daí se deslocou para a fortaleza (literalmente Massada), de onde o bando foi para a floresta de Herete por causa de uma proclamação profética (22.1-5). A paranóia assassina de Saul levou-o, a seguir, a eliminar praticamente todo o clã sacerdotal residente em Nobe (22.6-23), no que constituiu, por um lado, a sua alienação prática de qualquer vestígio de lealdade a Yahweh e, por outro, o cumprimento da maldição divina contra a casa de Eli (cf. 2.31). Abiatar, o único sobrevivente, fugiu para onde Davi se escondia. Assim, o futuro rei tinha o apoio de ambos os ofícios – o profético e o sacerdotal. A presença de Abiatar demonstrou ser valiosa desde o início, quando Davi teve de tomar uma decisão quanto a dar assistência a Queila, que estava sendo atacada pelos filisteus, (23.1-6). A perseguição de Saul ficava cada vez mais severa, o que fez Davi vagar pelo sul de Judá (23.7-29). Traição e ingratidão marcaram o tratamento que Davi recebeu de seus compatriotas, e seu único consolo foi uma visita surpresa de Jônatas (23.15-18). Um encontro fatal foi evitado, no último minuto, pelas notícias de que os filisteus, que, sem dúvida, estavam se aproveitando da falta de cuidado do rei com a segurança nacional, estavam atacando cidades desprotegidas (23.26-28). Depois de experimentar a libertação oportuna de Yahweh, Davi teve oportunidade de demonstrar sua lealdade pactual com o ungido do Senhor. Em uma caverna na região de En-Gedi ele poupou a vida de Saul e confrontou o rei com sua lealdade (24.1-15). As emoções superficiais de Saul, em um momento de lucidez, permitiram que o rei se arrependesse temporariamente de seu ódio e reconhecesse o direito de Davi à sucessão (24.16-20). Essa subdivisão termina com o voto de lealdade pactual de Davi com a linhagem de Saul (23.21, 22). A subdivisão seguinte apresenta Davi em mais uma faceta de seu caráter. Yahweh usou o incidente de Nabal para tornar Davi passível de ser ensinado e paciente, à medida que Abigail sabiamente impede que Davi derrame sangue sem necessidade. A recusa de Nabal em mostrar gratidão a Davi por suas atividades contra a pilhagem e em favor dos pastores, no Carmelo, serve como paralelo para a recusa de Saul em aceitar Davi como o escolhido de Deus. Mesmo a escolha de nomes oferece a mensagem dessa parte do livro – oposição a Davi é pura insensatez. Abigail percebe isso e, por fim, é acolhida na família de Davi e no círculo da bênção de Deus (25.1-41). A última subdivisão dessa divisão contém a confrontação final entre Davi e Saul, graças à intriga dos zifeus (26.1). Uma vez mais, Davi defronta-se com a possibilidade de eliminar a fonte de sua angústia e com o estímulo a assim fazer, mas respeita a santidade do rei em Israel e afasta-se apenas com um símbolo de vingança (26.2-12). Saul uma vez mais reconhece a inocência de Davi e eles separam-se em paz (26.13-25) depois que Davi faz um apelo emocionado para que Saul permita que Yahweh resolva qualquer divergência que exista entre eles.
A divisão final do livro é altamente dramática em seu conteúdo, apresentando de maneira tocante a remoção de Saul e a lição definitiva de dependência que Davi aprenderia. Davi, entendendo que as promessas de Saul só durariam até seu próximo episódio de depressão e paranóia, considerou melhor sair de Israel e fugir para a Filístia (27.1). Em minha opinião, este é um ponto muito baixo para Davi em sua vida de fé, em que uma vez mais ele recorre a meios enganosos para alcançar seus fins. Parece, em vista da linguagem empregada em 26.5 e 12, que Davi colocou a si mesmo e a seus homens a serviço de Aquis, como um vassalo (Merrill pensa que Davi jurou vassalagem a Aquis assim que subisse ao trono de Israel; Uma História de Israel). Embora, do ponto de vista humano, o ardil montado por Davi tenha sido altamente bemsucedido, conquistando-lhe o favor de Aquis e dos moradores de Judá (pois mantinha segura sua fronteira sul; cf. 27.5-12), ele foi uma clara demonstração do tipo de autoconfiança que Yahweh teria de remover. A oportunidade apresentou-se quando os príncipes dos filisteus reuniram seus exércitos para a guerra contra Israel e Aquis exigiu que Davi o acompanhasse na batalha. A engenhosidade de Davi o pusera em uma posição incômoda – a de guarda-costas do inimigo de sua nação (28.1-3). Esses ardis de Davi são contrastados com os ardis de Saul, à medida que o rei, desesperado, busca algum tipo de reforço religioso para uma situação alarmante (28.3- 6). Quando uma resposta divina lhe foi negada, Saul recorreu à bruxaria em sua tentativa de provocar uma resposta sobrenatural favorável, independente de que fonte. O pedido do rei para que Samuel aparecesse é soberanamente concedido por Yahweh a fim de apresentar, sem sombra de dúvida, a rejeição definitiva de Saul (28.7-19). Veja a página 264 para um comentário sobre a natureza desse incidente. A suprema e trágica ironia na vida de Saul reflete-se no fato de que assim como seu reino foi prometido no contexto de uma refeição oferecida pelo representante de Yahweh (9.21-24), o anúncio de sua derrocada também aconteceu no contexto de uma refeição, preparada por uma serva de Satanás. À medida que Saul sai de cena, o leitor fica com a impressão de que Israel fechou um círculo, de volta ao ponto em que, 90 anos antes, a nação tinha sido quase aniquilada pelos filisteus. Essa impressão é consumada pela menção a Afeque, o mesmo local do encontro do exército das cinco cidades dos filisteus (29.1). Uma vez mais a cena muda para focalizar Davi entre os filisteus, com o propósito de mostrar como Yahweh – ao mesmo tempo – o livrou de ser pego no lado errado de uma batalha contra o povo escolhido de Deus (29.1-11), e o disciplinou por meio de um ataque amalequita contra Ziclague (30.1-31). No primeiro incidente, os outros quatro senhores filisteus rejeitaram a presença de mercenários israelitas entre as tropas de Aquis; talvez a memória de desertores apiru (cf. 14.21) tivesse reforçado suas suspeitas em relação a Davi (29.4, 5), e Aquis foi forçado a dispensar seu bando mercenário (29.6-11). Davi, no entanto, ao voltar para sua base em Ziclague, encontrou a cidade em ruínas, depois de um ataque dos traiçoeiros amalequitas, que tiraram partido da mobilização geral dos exércitos para o norte e pilharam a região sul (30.1-5). O incidente fez Davi finalmente cair em si diante de Yahweh, quando seus homens se voltam contra ele e falam em executá-lo. O ponto de virada acha-se na última frase de 30.6: Mas Davi se fortaleceu no Senhor seu Deus. É digno de nota que a primeira ação de Davi, depois de se arrepender e reencontrar sua força espiritual, foi buscar a direção divina, em vez de confiar em sua capacidade e engenhosidade (30.7-10). Yahweh, graciosamente, permitiu que ele e seus homens recuperassem todas as suas posses e as suas famílias (30.11-25). Davi, depois de voltar, sabiamente dividiu o despojo com o povo do sul de Judá, um gesto generoso (embora não totalmente altruísta), que lhe conquistou o favor do povo de Judá (30.26-31).
O último capítulo do livro apresenta o destino inevitável de Saul e de seus seis filhos, incluindo o nobre Jônatas, na batalha contra os filisteus. Saul morre por suas próprias mãos, e as esperanças que Israel ainda tivesse de segurança e proteção morrem também com ele. O corpo e as armas de Saul são expostos publicamente em Bete-Seã (31.8-10; outro indício de que um ciclo se completou). O livro termina com o relatório do sepultamento de Saul após um ato heróico de lealdade pactual por parte dos homens de Jabes-Gileade (31.11-13). O cenário estava pronto para o estabelecimento da verdadeira monarquia em Israel.