A fuga do Egito significa nova vida, o renascimento da nação de Israel. A jornada do mar Vermelho até o Sinai fez o povo peregrinar por terras inóspitas onde logo todos conheceram a fidelidade de Deus em prover às suas necessidades, apesar de terem começado a murmurar o seu descontentamento (Êx 16 e 17). O povo também foi liberto do exército hostil dos amalequitas. Nesses breves episódios se revela a qualidade da vida redimida que existe até hoje para os cristãos e existirá até a volta de Cristo. A redenção, embora real, em um sentido importante é incompleta. A nova vida se caracteriza pela afirmação de Paulo: “…vivemos pela fé e não pelo que vemos” (2Co 5.7). A experiência do Egito revelou a Israel a necessidade de redenção para entrar no reino prometido de Deus. Porém, assim como aconteceu com Abraão anteriormente, Israel descobriu o aspecto de ainda não ter recebido o que fora prometido. Desse modo, os israelitas tiveram de contemplar o futuro com esperança e viver com fé nas promessas de Deus.
Israel está diante de Deus no monte Sinai. Ali as primeiras palavras de Deus a Moisés, que atua como o mediador para o povo, dizem respeito à aliança. Praticamente toda a teologia da redenção e da nova vida está resumida em Êxodo 19.4-6: Deus julgou os inimigos de seu povo e de seu reino (v. 4a). Ele redimiu o seu povo e o reconciliou consigo (v. 4b). Se essas pessoas mostrarem que a redenção delas não é meramente exterior, mas algo que vem do coração, se obedecerem à palavra de Deus, elas serão sua propriedade especial entre todos os povos sob o domínio soberano dele (v. 5). Portanto, como povo, os israelitas viverão em uma relação exclusiva com Deus, ao mesmo tempo que o representarão para o mundo inteiro como sacerdotes (v. 6). A função sacerdotal em um mundo que pertence a Deus dá mais sentido à promessa da aliança original de que todas as nações da terra seriam abençoadas por meio dos descendentes de Abraão (Gn 12.3). É função do sacerdote aproximar-se de Deus em nome de outros e aproximarse do povo em nome de Deus. Por intermédio de seus próprios representantes escolhidos, os sacerdotes levitas, Israel aprenderia como, na condição de nação, poderia se aproximar de Deus mediante um ministério sacerdotal. Depois também aprenderia que as bênçãos da aliança transbordariam um dia para todo o mundo por intermédio deles.
Israel é chamado de o filho de Deus. Esse termo é empregado raramente no Antigo Testamento, mas a relação transparece por meio desses acontecimentos. Somente mais tarde a importância plena disso ficará evidente, quando o Filho de Deus vier cumprir em sua própria vida todos os propósitos de Deus para Israel. Contudo, ainda que o povo compreendesse imperfeitamente o significado da redenção do Egito, percebia que ela exigia uma resposta adequada. Conscientes de que a fidelidade da aliança de Deus fizera algo grandioso por eles, e antes mesmo de conhecerem os detalhes da palavra de Deus a que deviam obedecer, os israelitas respondem com a sua própria declaração de obediência (Êx 19.8). Talvez pareça um pouco prematuro e precipitado, contudo é a única reação que eles podiam ter naquelas circunstâncias. Não existe aceitação condicional da graça de Deus.
• A nova vida por meio da redenção implica um relacionamento com Deus estruturado pela Lei. Como o povo de Deus, Israel é chamado para ser uma nação de sacerdotes que de algum modo será o agente da bênção de Deus a todas as nações.
LIBERDADE DE VIVER PARA DEUS
Procurando compreender o Antigo Testamento, muitos cristãos se atolam nos detalhes da Lei. O espaço nos permite somente uma análise breve da natureza e do sentido da Lei. Neste estágio, estamos interessados na função da Lei no Antigo Israel. A relação da Lei com o evangelho será analisada quando chegarmos ao Novo Testamento. No entanto, não devemos ignorar a relação da Lei com a graça no Antigo Testamento. O primeiro pronunciamento no Sinai foi uma mensagem sobre a graça (redenção) e a aliança, para a qual se exigiu uma resposta obediente (Êx 19.4-6). O mesmo padrão da prioridade da graça se manifesta na entrega dos Dez Mandamentos. Isso fica bem explícito na declaração: “Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirou da terra do Egito…” (Êx 20.2). Ele é o Deus daquele povo, e ele os salvou. Sobre esse fundamento, a Lei é entregue ao povo. Evidentemente, a despeito de todas as declarações de condições, a Lei é dada a todos os que já experimentaram a graça de Deus na salvação, e não é com base na Lei que eles serão salvos.
O dever de obediência é exigido porque a relação de filiação já fora estabelecida como dádiva imerecida. Isso é reforçado na forma dos Dez Mandamentos (ou Decálogo). Há algum tempo se reconhece que o Decálogo segue a forma de um tratado de aliança, muito conhecido no mundo antigo do Oriente Próximo. As condições, ou exigências, desse tipo de contrato eram impostas por um rei vencedor sobre um povo subjugado, uma vez que este povo havia se tornado seu súdito. Os privilégios dessa relação seriam mantidos pela obediência às condições estipuladas. A conclusão é que Deus deliberadamente entrega a Lei nessa forma porque é apropriada para a natureza da relação. A dádiva de Deus é tal que pode ser recebida somente pelo que é. Ser salvo ou redimido significa ter a condição de filiação e comunhão com Deus restaurada. Dizer que recebeu a dádiva da amizade com Deus e ao mesmo tempo persistir em uma vida marcada por afastamento e inimizade é obviamente um absurdo.
A primeira das dez ordens do Decálogo inclui, na verdade, tudo o que vem depois dela. “Não terás outros deuses além de mim” é uma reivindicação de poder exclusivo e soberano. Mas seres humanos pecadores e ignorantes não conseguem saber o que isso significa em todas as áreas da vida. Os israelitas dependiam da revelação de Deus para compreender corretamente qual era a resposta adequada ao mandamento. Começando pelo Decálogo, a Lei detalha as implicações do direito exclusivo de Deus a seu povo mediante a aliança. Deus, evidentemente, tem o direito exclusivo sobre toda a criação, mas a relação de aliança era um dom somente para o seu povo escolhido. As exigências da Lei não são arbitrárias nem caprichosas, pois têm origem no caráter de Deus e refletem esse caráter, bem como o seu propósito para a humanidade na Criação e na redenção. Elas indicam a natureza da reconstrução da relação perfeita que Deus estabeleceu na criação, mas que foi rompida pelo pecado humano. Algumas leis, muitas vezes chamadas de leis morais, refletem essas relações mais diretamente que as demais. Outras leis tratam da situação de Israel em consonância com sua experiência histórica. Ainda outras parecem apresentar certa arbitrariedade, uma vez que relacionam determinados aspectos da experiência à vida cerimonial da nação.
Assim como o primeiro mandamento é uma mensagem que inclui os outros nove, também os dez mandamentos contêm os princípios que regem todas as leis de Deus. Podemos observar esse princípio no modo que Jesus selecionou os dois mandamentos sobre os quais tudo na Lei e nos Profetas se baseia (Mt 22.34-40). Amor a Deus (Dt 6.5) e amor ao próximo (Lv 19.18) são consequências do primeiro mandamento. Mas o que significa amar a Deus e amar o próximo? Nesse ponto da revelação progressiva do reino de Deus, da qual fazem parte os acontecimentos do Sinai, é apropriado que a resposta dos redimidos à graça de Deus seja detalhada do modo que é. Todas as implicações de amar a Deus e de não ter nenhum outro deus além dele se difundem para todos os aspectos da vida dos israelitas, assim como ondulações num lago.
Se a aliança significa que Israel deve responder adequadamente aos atos de Deus para com seu povo, o que se considera adequado depende, pelo menos em parte, do quanto essa ação salvadora de Deus é plena e claramente revelada. A redenção do cativeiro do Egito prenuncia a obra salvadora de Cristo. Ela contém a estrutura do evangelho, mas não revela sua plenitude. Uma vez que a revelação do Êxodo é incompleta, ela necessita de uma exposição mais detalhada do que significa viver como povo redimido. Na infância espiritual em que os israelitas estavam, eles precisavam ser tutoreados muito mais diretamente no viver santo (veja Gl 3.23-25). Só assim eles aprenderiam de que tipo de liberdade gozavam por haverem sido libertados da escravidão do Egito.
• A Lei é entregue ao povo escolhido de Deus para que esse povo, já redimido, saiba o que a sua nova relação com Deus significa para o seu modo de viver. A Lei do Sinai é a expressão do caráter de Deus de acordo com a revelação de seu reino naquela época.
LIBERDADE PARA SE APROXIMAR DE DEUS
A aliança se caracteriza pela disposição de Deus para ser Deus de um povo sem merecimento. Na comunhão de Adão e Eva com Deus no jardim do Éden, podemos perceber um pouco de como essa relação foi concebida para ser. Agora, porém, a humanidade pecadora está sendo restaurada de seu estado de negação de Deus. Como podem pessoas ainda pecadoras se aproximar de um Deus santo? A resposta bíblica diz ser necessário um mediador, um intermediário. Moisés é o mediador dos atos salvadores de Deus no Êxodo e também da palavra de Deus que interpreta a existência redimida proporcionada pelos atos salvadores de Deus no Êxodo. Agora é preciso um sacerdócio mediador juntamente com os meios de exprimir em que ponto eles se encontram no processo de restauração naquele momento. O meio que Deus provê para isso é o Tabernáculo. A palavra tabernáculo significa simplesmente uma tenda, porém conservamos a palavra porque ela passa a significar uma tenda especial. Em Êxodo 25—30, Deus apresenta a Moisés os detalhes do Tabernáculo e das funções sacerdotais associadas a ele. Em Êxodo 35—40, temos uma descrição da construção do Tabernáculo. Em seguida, em Levítico, são prescritos os vários sacrifícios que devem ser realizados no Tabernáculo. Não se deixa por conta da imaginação do povo nenhum detalhe sobre a construção da tenda e a feitura de seus pertences, pois os israelitas dependem completamente da revelação de Deus para o conhecimento de sua relação com ele.
A forma e a disposição do Tabernáculo são importantes, porque ele fornece uma expressão vívida do estado espiritual de Israel como o povo da aliança, que é redimido, mas ainda pecador. Um pátio com uma cerca alta em volta da tenda indica a separação que o pecado causa entre os pecadores e um Deus santo. A cerca do pátio tem uma entrada na extremidade de frente para a porta da tenda. Depois da entrada fica o altar do sacrifício. De algum modo, o derramamento de sangue obtém acesso para o adorador arrependido, mas apenas por representação. O sacerdote israelita representa o povo e pode ingressar na tenda em nome dele, mas só depois de oferecer um sacrifício e purificar-se na pia da lavagem ritual que fica na frente da tenda. Dentro da tenda há um candelabro, uma mesa e um altar para a queima de incenso. A extremidade oposta é separada por um véu e, por trás desse véu, numa sala cúbica, fica a arca da aliança. Tudo nessa estrutura fala de três grandes verdades: Deus quer habitar com o seu povo e se reunir com ele; o pecado separa o povo de Deus; e Deus provê uma forma de reconciliação com o sacrifício e a função mediadora do sacerdote.
Não há nenhuma afirmação explícita de uma teologia da expiação ligada aos sacrifícios instituídos no Sinai. No entanto, em alguns aspectos pelo menos, o significado implícito é claro. Para começar, os israelitas são informados de que a aplicação fiel do sistema sacrificial é aceitável diante de Deus e de algum modo produz o perdão de pecados. As cinco ofertas principais que Levítico 1—6 menciona se combinam para expressar a totalidade da reconciliação e a restauração da comunhão com Deus. Começando pela culpa do ofensor diante de um Deus santo, os diferentes aspectos desses sacrifícios apontam para o sacrifício de uma vítima aceitável que assume o lugar do ofertante; a cobertura ou expiação dos pecados; a restituição às pessoas que foram prejudicadas; a obediência e dedicação a Deus; e a comunhão com ele (numa refeição). O ritual do Dia da Expiação (Yom Kippur) em Levítico 16 é particularmente eloquente em relação ao sacrifício vicário (substitutivo) como o meio de aceitação por Deus.
• O Tabernáculo e os sacrifícios servem para retratar e levar a efeito a relação do pecador redimido com um Deus santo. Deus habita entre o seu povo, mas o pecador só pode se aproximar dele por um mediador que oferece um sacrifício aceitável pelo pecado.
—- Retirado de Graeme Goldsworthy – Introdução à teologia bíblica
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