Tudo descrito nestes capítulos sobre simbolismo está relacionado, pelo menos levemente, à tipologia bíblica. O dilúvio é um tipo, como é a destruição do templo. Eu me referi a esses como sendo “imagens”, principalmente por sua semelhança ao imaginário de árvore que temos na Bíblia. Mas, mesmo que o imaginário de árvore seja usado como resumo e explanação da história da Bíblia, uma árvore não pode ser considerada um tipo.
Os dois fatores-chave da tipologia bíblica são correspondência histórica e escalonamento. A correspondência histórica tem a ver com o modo com que pessoas, eventos, ou instituições reais correspondem uns aos outros — por exemplo, Noé e Moisés realmente foram preservados através de águas em que outros morreram. A escala tem a ver com o modo com que nos movemos desde o instante inicial, que poderíamos chamar de arquétipo, atravessando as prestações do modelo que reforçam o significado do arquétipo, aumentando a força na subida, morro acima, até que o tipo encontre cumprimento em sua expressão máxima. Aumenta a importância ao longo do caminho, desde o arquétipo até o seu cumprimento.
ANTESSOMBRAS E FIGURAS:
PESSOAS, EVENTOS, E INSTITUIÇÕES
A tipologia introduzida no Antigo Testamento funciona como antessombra literária, mas é mais que mero recurso literário. Os tipos não são correspondências arbitrárias inventadas pelos autores bíblicos, mas relatos autênticos do que realmente ocorreu. Os autores bíblicos chamam a atenção às pessoas, aos eventos, e às instituições onde o autor divino produziu uma semelhança real. Examinar a tipologia bíblica é fazer exame da orquestração do Deus soberano. Quando as pessoas notam o tipo de coisa que Deus fez, e interpretam esses modelos à luz das promessas que Deus fez, elas começam a esperar que Deus aja no futuro conforme ele agiu no passado. Essa antessombra tipológica envolve pessoas, eventos e instituições. Aqui, vamos considerar exemplos de cada um.
Pessoas. Faraó tentou matar o bebê Moisés; Herodes tentou matar o bebê Jesus. Moisés e seus pais eram estrangeiros na terra do Egito; Jesus e seus pais foram estrangeiros na terra do Egito. Deus chamou Moisés para liderar a Israel, seu filho primogênito (Êx. 4.22), e tirá-lo do Egito; Deus deu um sonho ao marido de Maria, José, ao que ele respondeu conduzindo Jesus, o amado filho de Deus, para fora do Egito (Mt 2.15). Moisés conduziu os filhos de Israel pelas águas do Mar Vermelho para o deserto, onde as pessoas foram tentadas e pecaram (Êxodo 16-34); Jesus foi batizado no rio Jordão por João e, então, foi para o deserto para ser tentado por Satanás, onde ele permaneceu firme na Palavra de Deus (Mt 3.13-4.11). No Monte Sinai, Moisés subiu a montanha e desceu com o Livro da Aliança (Êxodo 19-24, esp. 24.7); Jesus “subiu ao monte, e quando se assentou, seus discípulos vieram até ele” (Mt 5.1); e Jesus ensinou seus discípulos a lei de Cristo (cf. 1 Co 9.21; Gl 6.2) no sermão do monte (Mateus 5-7). São estes alguns pontos de correspondência histórica entre Moisés e Jesus.
Existe também um escalonamento desde Moisés até Jesus: Moisés conduziu Israel para fora da escravidão do Egito; Jesus salvou seu povo de sua escravidão do pecado. Moisés levou Israel a uma sombra do novo Éden, a Terra Prometida; Jesus conduzirá o seu povo para um novo e melhor Éden, o novo céu e nova terra.
Eventos. No êxodo do Egito, depois que Moisés foi preservado do ataque sobre sua vida pela semente da serpente, ele foi inicialmente rejeitado pelo povo de Israel (Êx 2.14). Foi embora, casou-se com uma gentia (Êx 2.21), e então retornou para conduzir Israel para fora do Egito. O Senhor abateu o primogênito do Egito, passando sobre os primogênitos de Israel por causa do sangue do cordeiro pascal nos umbrais de suas casas. Israel foi “batizado, assim na nuvem como no mar, com respeito a Moisés” (1Co 10.2), e então as pessoas “comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte” (10.3), quando veio maná do céu e água da rocha. No Sinai, Israel entrou em aliança com Iavé (Êxodo 20-24), a nação recebeu instruções (Êxodo 25-31) e, em seguida, construiu o tabernáculo (Êxodo 35-40).
O que Jesus realizou foi cumprimento tipológico do êxodo, porque existe correspondência histórica entre os eventos bem como um escalonamento de seu significado. Jesus foi preservado do ataque sobre sua vida pela semente da serpente, e o povo de Israel inicialmente o rejeitou. Paulo ensina, porém, que quando Jesus voltar, todo Israel será salvo (Rm 11.25-27). No presente, Jesus tem uma igreja predominantemente gentílica como noiva. Paulo identifica Jesus como nosso cordeiro da Páscoa (1Co 5.7), e aqueles que creem em Jesus foram batizados nele. Participamos de um alimento e bebida espiritual melhores na Ceia do Senhor; e na lei de Cristo, recebemos uma melhor lei, que veio com uma melhor aliança (Hebreus 8-9, esp. 8.6). A igreja está sendo edificada em novo templo (ver, por exemplo, 1Co 3.16; 1Pe 2.4-5).
Aqui, o arquétipo do Antigo Testamento e seu cumprimento em Cristo, em sua morte e ressurreição, apontam adiante para a consumação de todas as coisas, conforme o livro de Apocalipse apresenta o derramamento final da ira de Deus em um modelo semelhante ao êxodo, com os juízos que acompanham as trombetas e taças correspondentes às pragas do Egito. No êxodo do Egito, Deus salvou seu povo da escravidão dos egípcios. No novo êxodo, realizado por Jesus sobre a cruz (cf. Lucas 9.31), Deus salvou seu povo de seus pecados. No êxodo desta era presente, Deus salvará seu povo da escravidão da corrupção (Rm 8.18-25; Ap 20.14-21.8).
Jesus é um Moisés novo e melhor, que ofereceu novo e melhor sacrifício, porque ele é o sacerdote novo e melhor, mediador de uma nova e melhor aliança, enquanto progredimos rumo à terra que é nova e melhor. Jesus também é novo e melhor Davi, e está conduzindo-nos a um reino novo e melhor, que jamais será abalado.
Instituições. Tanto o sacerdócio, quanto o sistema sacrificial dado a Israel, no Antigo Testamento, são sombras que apontam para realidades melhores em Cristo (cf. Hb 10.1). Em Hebreus 5-7, o autor explica como Jesus cumpre o sacerdócio e o substitui, e em Hebreus 9-10 o escritor elabora sobre como a morte de Cristo sobre a cruz é um sacrifício melhor, cumprindo o sistema levítico e levando-o a seu fim:
Novo e melhor Moisés
Novo e melhor Davi
Novo e melhor Sacerdote
Novo e melhor Sacrifício
Nova e melhor lei
Nova e melhor aliança
NENHUM DE SEUS OSSOS SERÁ QUEBRADO
Já olhamos exemplos de pessoas, eventos e instituições que se alimentam da tipologia bíblica, mas isso não deve nos levar a concluir que estas sejam três categorias não relacionadas. Às vezes, as pessoas, eventos e instituições são entretecidas, como no caso do exemplo que passamos agora a considerar. Espero demonstrar que o evento do êxodo, a festa instituída da Páscoa e a pessoa de Davi, todos se enquadram naquilo que João diz sobre como a morte de Jesus é o cumprimento tipológico do êxodo, da Páscoa, do sofrimento e da libertação de Davi.
Os autores do Novo Testamento estão constantemente afirmando que o Antigo Testamento foi cumprido. João 19.36 é um bom exemplo disso. O soldado romano furou o lado de Jesus (João 19.34). João insiste que viu com os próprios olhos e está contando a verdade (19.35), e em seguida escreve: “Pois estas coisas aconteceram para que a Escritura se cumprisse: ‘Nenhum de seus ossos seria quebrado’”. Ao lermos isso, a maioria de nós, provavelmente, assume que o Antigo Testamento predisse que nenhum dos ossos do Messias seria quebrado. Porém, se formos procurar a referência cruzada, descobriremos que Êxodo 12.46 não estava predizendo o que aconteceria ao Messias, mas dando instruções quanto ao cordeiro da Páscoa. O que acontece aqui? O texto que, aparentemente, João diz estar sendo cumprido nem mesmo é uma predição!
Como João interpreta Êxodo 12.46? Eu sugiro que João interpretou este versículo da mesma forma que Davi o interpretou, no Salmo 34.20. Permita-me explicar. Conforme mencionei, os autores bíblicos posteriores usam os eventos do êxodo do Egito como um paradigma para descrever a salvação de Deus. Em diversos pontos, vemos isso nos salmos. Vemos pesado uso de imagens do êxodo no Salmo 18, de onde eu espero estabelecer este ponto, para que, quando notarmos um uso mais leve do imaginário do êxodo no Salmo 34, possamos colocá-lo como operando na mesma dinâmica.
No Salmo 18, Davi descreve como o Senhor “o salvou da mão de seus inimigos e de Saul”. Davi começa professando o quanto ama ao Senhor (18.1- 3), então usa metáforas para descrever as dificuldades que enfrentou (18.4-5) e relata como clamou por Iavé (18.6). Ao descrever o Senhor respondendo às suas orações, no Salmo 18.7-15, Davi usa imagens do relato de como Iavé apareceu a Israel no Monte Sinai, em Êxodo 19.16-20.
O tremer da montanha (Sl 18.7; cf. Êx 19.18), a fumaça (Sl 18.8; cf. Êx 19.18), raios, trovões e fogo, e o Senhor descendo (Sl 18.8-14; cf. Êx 19.16-20) — todas essas imagens vêm direto da teofania do Sinai. Porém, vão mais fundo do que apenas uma reutilização de uma descrição de Deus aparecendo em favor de seu povo. Como Êxodo 19-24 relata como Deus fez aliança com Israel, talvez Davi esteja ligando o modo como Deus fez pacto com Israel ao modo como Deus fez aliança com ele (2Samuel 7; Sl 89.3).
Davi passa a descrever o Senhor que o livra, mostrando a semelhança com o abrir do Mar Vermelho (Sl 18.15; cf. Êx 15.8), a como foi tirado das águas à semelhança de Moisés (Sl 18.16; cf. Êx 2.10), e o Senhor o conduzindo a um lugar espaçoso como a Terra Prometida (Sl 18.19). O que Davi faz aqui? Ele descreve como o Senhor o libertou de Saul e de todos os seus inimigos (título do Salmo 18), e usa os eventos do êxodo do Egito, a aliança no Sinai, e esquemática interpretativa para descrever como o Senhor o salvou. Davi emprega um imaginário similar, ainda que menor, no Salmo 34. No Salmo 34, ele descreve outro instante em que estava correndo perigo e o Senhor o preservou. Ele bendiz ao Senhor (34.1-3), e passa então a relatar como ele clamou ao Senhor por socorro (34.4-6). Em seguida, Davi faz uma afirmativa que resume como o Senhor protegeu Israel do Egito, quando estavam enredados entre os carros de Faraó e o Mar Vermelho. Êxodo 14.19- 20 relata:
Então o Anjo de Deus, que ia adiante do exército de Israel, se retirou e passou para trás deles, e se pôs atrás deles, e ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; a nuvem era escuridade para aqueles e para este esclarecia a noite; de maneira que, em toda a noite, este e aqueles não puderam aproximar-se.
Se quiséssemos colocar em termos poéticos, teríamos dificuldade para melhorar o que diz Davi, no Salmo 34.7:
O anjo do Senhor se acampa ao redor dos que o temem, e os livra.
Não fosse o que Davi continua dizendo no Salmo 34.20, poderíamos até pensar que isso não era mais que a reutilização de uma figura. Mas no versículo 20, Davi usa a linguagem e imagem das instruções para o cordeiro da Páscoa de Êxodo 12.46 quando descreve o Senhor que preserva os justos: “Ele conserva todos os seus ossos; nenhum deles será quebrado” (Sl 34.20).
Como passamos de declarações sobre o cordeiro pascal, em Êxodo 12.46, à reutilização dessa linguagem e imaginário no Salmo 34.20? Vamos considerar os versículos logo anteriores do Salmo 34.20. Salmo 34.18 fala que o Senhor está perto dos “quebrantados” e salva “os abatidos de espírito.” No hebraico, esses termos estão no plural, querendo Davi dizer que todos os que estão do seu lado, que se refugiam em e temem ao Senhor (Sl 34.8; 34.9), e se afastam de seu pecado (34.14). Então, no Salmo 34.19, há uma mudança do plural para o singular: “Muitas são as aflições do justo, mas o Senhor de todas o livra”. Essa mudança para o singular muda o foco dos que estão sofrendo com Davi (Sl 34.18; cf. 1Sm 22.1-2) para o próprio Davi (Sl 34.19). Davi representa aqueles que se alinharam com ele. Quando Davi for liberto dos seus inimigos, todos que estavam ao seu lado também estarão seguros.
Quando ele usa o imaginário do cordeiro da Páscoa, no Salmo 34.20, e como no verso 19 os termos estão no singular e não no plural, parece falar de sua própria preservação como se fosse uma espécie de cordeiro pascal, para aqueles que estão aliados a ele. É quase como se Davi dissesse que o Senhor, livrando-o de seus inimigos, fizesse um novo êxodo. Ele não espera morrer, mas está sofrendo na mão de seus inimigos e sabe que sofrerá ainda mais, antes de ser libertado. Confiantemente, espera passar por essa perseguição e aflição e sair dela, assim como Deus salvou Israel no êxodo do Egito. Quando Deus livrá-lo, os ímpios serão mortos (Sl 34.21) e a vida dos servos do Senhor serão redimidas — e sabemos onde Deus redimiu os seus servos: no êxodo (Sl 34.22).
O ponto que quero ressaltar é que, nos Salmos 18 e 34, Davi descreve como o Senhor o salvou; os eventos do êxodo servem como uma espécie de gabarito, ou paradigma, ou esquemática. A salvação realizada por Deus para Israel, no êxodo, é o arquétipo. Davi passa, então, a interpretar e descrever sua própria libertação em termos extraídos do arquétipo, fazendo com que a libertação realizada pelo Senhor em sua experiência fosse uma parcela no modelo tipológico do êxodo. Conforme vimos, os profetas descrevem a libertação futura que o Senhor dará a Israel depois do exílio como outra parcela ou prestação nesse modelo tipológico. Em João 19.36, João afirma que Jesus cumpriu este modelo em sua morte na cruz.
João não está dizendo que Êxodo 12.46 seja uma predição de que os ossos de Jesus não seriam quebrados. Ele está afirmando que Jesus é o cumprimento tipológico, ou antítipo, do cordeiro da Páscoa. A morte de Jesus cumpre a morte do cordeiro. O êxodo do Egito é a salvação arquétipa que Deus faz por seu povo, e a morte de Cristo sobre a cruz é o cumprimento do que o êxodo tipificava.
—- Retirado de James M. Hamilton – O que é Teologia Bíblica?
Aprenda mais sobre o assunto lendo o post sobre AS FESTAS E OS SÍMBOLOS DO ANTIGO TESTAMENTO.
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