Desde o início da era cristã e, especialmente, desde o Iluminismo, os críticos são praticamente unânimes em insistir que Daniel não escreveu o livro que leva seu nome e que o livro não surgiu no final do século VI, conforme seu conteúdo sugere. Antes, a notável exatidão das profecias apresentadas no livro, em especial no capítulo 11, sugere a eles que a origem do livro é de meados do século II. Esse ponto de vista tornou-se quase matéria de dogma no meio acadêmico contemporâneo, exceto entre aqueles receptivos à possibilidade da existência da profecia vaticinadora e os familiarizados com a natureza do aramaico em que metade do livro foi escrito e também outras determinadas características dele.
Afora tudo isso, há concordância em relação ao fato de que o livro observa um cenário da Babilônia do século VI sob o longo governo de Nabucodonosor (605-562 a.C.); uma série de sucessores deste, incluindo Belsazar (562-539) e os primeiros governantes do domínio persa na Babilônia, Ciro, o Grande, e Dario, o meda (chegando até cerca de 530). Alinhados com nosso constantemente repetido método, abordaremos a mensagem teológica do livro à luz de seu próprio cenário atestado, em vez de à luz de um cenário determinado pela análise crítico-histórica.
A COMPETIÇÃO PELA SOBERANIA
O principal tema do livro é a competição entre o Reino de Deus e os reinos do mundo, sintetizados principalmente no babilônio e no persa.3 Daniel teve visões e sonhos seus mesmos e interpretou os de outras pessoas, em especial de reis, no quais o curso futuro da história teria participação, culminando, no fim, com o julgamento das nações por parte do Senhor e com a substituição delas pelo governo soberano do Senhor. A orientação do livro é histórica e escatológica, sendo a última mais predominante, e a apresentação é apocalíptica. Ou seja, o escopo é panorâmico e universal, a linguagem é muitíssimo simbólica e figurativa, e a ênfase é dirigida às nações em geral sem dedicar especial atenção a Israel. O livro todo pressupõe o messianismo, contudo, um personagem messiânico, na melhor das hipóteses, é apenas sugerido (por exemplo, Dn 9.25).
Um bom ponto para iniciar é a oração de Daniel (Dn 9.1-27), na qual ele esboça rapidamente a desobediência do povo escolhido (w. 4-1 la), antecipa o julgamento deles (w. 11 b-14) e prediz o perdão e a restauração deles (w. 15-27). Eles romperam a aliança com o Senhor e, agora, encontram-se espalhados de um canto a outro da terra. Daniel, citando os textos das maldições da aliança (mais provavelmente de Lv 26 e Dt 28), confessa que ele e seu povo sofrem por ter violado as estipulações de que os textos falam (v. 11b). Todavia, através de todos os séculos do julgamento de Deus, eles recusaram-se a se arrepender e, por isso, merecem o destino terrível que enfrentavam agora no exílio (v. 14). Ele conclui a oração apelando para a libertação do êxodo como um precedente histórico para o Senhor agir mais uma vez perdoando e salvando. Daniel pede, com premência, que o Senhor olhe o templo arruinado com benevolência, veja com compaixão a cidade santa que carrega seu nome e que faça isso por causa de sua misericórdia e a despeito de sua justa deserção de seu povo (w. 17-19).
A resposta à oração não demora a vir, pelo menos, não em termos do que o Senhor faria no futuro (w. 24-27). Naquela época, os judeus sofreram por setenta anos no cativeiro, conforme previsto por Jeremias (Dn 9.2; cf. Jr 25.11; 29.10), mas em sete vezes setenta anos o Senhor “dar[ia] fim ao pecado, […] tra[ria] justiça eterna, cumprir[ia] a visão e a profecia, e ungir[ia] o santíssimo” (v. 24). A divisão das semanas de anos em seus vários segmentos — sete semanas, sessenta e duas semanas e uma semana — produz múltiplas interpretações, dependendo geralmente do sistema escatológico adotado pelo estudioso.5 Contudo, determinados elementos são ambíguos e não há indícios exegéticos nem hermenêuticos que sugiram que a descrição deles deve ser entendida de alguma forma que não a literal: (1) Jerusalém será reconstruída; (2) virá um governante ungido; (3) ele será exterminado; (4) um governante hostil destruirá a cidade e o templo; (5) a guerra continuará durante esse período; (6) o governante ímpio fará uma aliança de duração de “uma semana”, contudo, a romperá na metade desse período; e (7) o governante encontrará seu fim depois de profanar o templo (w. 25-27; JB ).
O ungido (mãsiah), o governante (nãgid), é visto universalmente como o Messias davídico, identificado na teologia cristã como Jesus Cristo. A exterminação {kãrat; JB) dele, sem dúvida, refere-se a sua morte violenta, quer “não deixando nada/ninguém” quer “não por si mesmo” (portanto, o termo hebraico ‘ên lô). O intérprete cristão tem dificuldade em entender alguma outra coisa aqui que não a crucificação de Cristo no século I da era cristã.7 Mas a introdução do governante por vir, que destruiria a cidade e templo e, depois, faria uma aliança e a romperia, aponta claramente para uma época escatológica na qual, por fim, a justiça prevaleceria. Daniel refere-se a esse conflito dos reinos em outras passagens e oferece boa quantidade de informação a respeito do governante perverso de quem fala aqui. Na análise final, esse governante sintetiza todos os sistemas mundiais que permanecem em implacável antítese à soberania e aos propósitos do Senhor.
OS REINOS DESTE MUNDO
A humanidade, desde a Queda, sempre viveu em rebelião contra o Reino de Deus, tentando criar seus próprios domínios alternativos e se recusando a cumprir a ordem da criação para a qual Deus a criou à sua imagem. O Antigo Testamento, como um todo, testifica essa rebelião à medida que ela se desdobra historicamente. Todavia, a preocupação de Daniel não era tanto histórica quanto contemporânea (a ele) e escatológica. Ele refere-se aos reinos de sua época e aos ainda por vir, incluindo o Reino de Deus, que, no fim, prevalecerá sobre os outros.
A natureza e o resultado dos reinos dos homens ficaram gravados no relato de Daniel pelos sonhos e visões (conforme já mencionamos), sendo o primeiro um sonho do rei Nabucodonosor da Babilônia. O rei não conseguia imaginar o sentido do sonho e se recusou a divulgar o conteúdo deste para os “magos, os encantadores, os feiticeiros e os astrólogos”; mas, no fim, Daniel soube do sonho e ofereceu uma interpretação inspirada (Dn 2.36-43). Nabucodonosor vira uma grande estátua feita de alto a baixo de vários metais, terminando com pés de barro. A cabeça de ouro da estátua representava Nabucodonosor mesmo, disse Daniel, pois ele era “rei de reis” (v. 37). Contudo, o reinado dele era secundário. O Deus do céu confiara-o a ele. Daniel, com palavras semelhantes às da ordem da criação de Gênesis 1.26-28, informa o rei babilônio: “O Deus dos céus concedeu-te domínio, poder, força e glória; nas tuas mãos ele colocou a humanidade, os animais selvagens e as aves do céu. Onde quer que vivam, ele fez de ti o governante deles todos” (w. 37,38). Parece que Nabucodonosor simbolizava o governo que a humanidade como um todo fora designada a exercer.
Os reinos de prata, de bronze e de ferro que se seguiriam culminariam com um governo desunido e fraco que, embora universal, caiu sob uma pedra esmagadora “que se soltou de uma montanha, sem auxílio de mãos”, isto é, o Reino do Deus do céu que nunca seria destruído (v. 45). A história humana e sua orgulhosa declaração de domínio rival dariam lugar ao Deus da eternidade.9 Entretanto, parece que Nabucodonosor não aprendeu muito com o sonho, pois instalou uma imagem de ouro diante da qual exigia que o povo de seu reino se curvasse. Todavia, determinados cidadãos do Reino do céu — Sadraque, Mesaque e Abede-Nego — recusaram-se a fazer isso; pois adorar a Nabucodonosor seria negar a soberania de Deus. A questão em jogo não podia ser mais clara: “Saiba, ó rei”, disseram eles, “que não prestaremos culto aos teus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer” (Dn 3.18). Eles foram lançados em uma fornalha em chamas por sua insubordinação, mas saíram incólumes dela, testificando sua fé de que “o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará” (v. 17). Assim, o Reino de Deus não precisava de um dia escatológico de realização, ele já estava em operação na história.
Essa mesma demonstração de soberania divina no presente reverbera no sonho de Nabucodonosor sobre a grande árvore cheia de folhas e frutos que abriga rodos os animais e aves da terra.10 Contudo, a árvore caiu e todos os animais fugiram. O toco de árvore que sobrou virou um animal selvagem que pastava por ali para sobreviver (Dn 4.9-16). Daniel revelou ao rei que este era a árvore e o animal selvagem. O rei, por causa de sua arrogância, seria tirado temporariamente de seu trono, ficaria louco e, depois de reconhecer a soberania do Senhor, seria reinstalado no trono (w. 20-27). Conforme Daniel coloca, a condição para a continuidade da monarquia de Nabucodonosor era ele “reconhecer […] que os Céus dominam” (v. 26).
Belsazar, sucessor posterior de Nabucodonosor, teve de aprender a mesma coisa, primeiro por meio da escrita na parede (Dn 5.18-28) e, depois, por intermédio de um sonho de Daniel que continha claras implicações em relação a Belsazar e aos reinados posteriores (Dn 7.1-14). Nesse sonho, havia quatro animais que se levantaram do mar — um leão, um urso, um leopardo e um indefinido. O último tinha dez chifres, três dos quais foram arrancados e substituídos por outro. Esse chifre falava e o fazia de modo prepotente (v. 8). Daniel foi informado que os animais eram quatro reinados sucessivos que, como os reinos do sonho de Nabucodonosor (Dn 2), no fim, submeter-se-iam ao Reino do Altíssimo (v. 18). Ele soube que os chifres do quarto animal eram dez reis e o décimo primeiro era um governante que “falar[ia] contra o Altíssimo […] e tentar[ia] mudar os tempos e as leis” (Dn 7.25). Fica claro que esse governante é o mencionado em Daniel 9.25-27, o que destruiria Jerusalém e seu templo e que faria aliança com o povo de Deus e a romperia.
Isso fica ainda mais claro por meio da visão de Daniel do carneiro e do bode (Dn 8). Parece que um carneiro com dois chifres que estava no leste caminhou em direção ao oeste até ficar de frente com um bode, que tinha um chifre entre os olhos. O carneiro foi energicamente derrotado, e o bode tomou o lugar deste como governante poderoso. Todavia, após um tempo, o chifre do bode foi quebrado e substituído por quatro outros chifres e de um destes nasceu ainda outro chifre. Esse chifre cresceu em poder “na direção […] da Terra Magnífica” (v. 9), chegando a ponto de apropriar-se dos cultos do templo santo (v. 12). Dessa vez, Daniel não foi deixado com dúvida em relação à identidade dos personagens da história. O carneiro era o Império Medo-Persa, o bode, o Império Grego, e os quatro chifres eram as nações que substituiriam o fragmentado Império Macedônio, conhecido por Diadochi. O chifre que saiu dos outros quatro é chamado aqui “rei de duro semblante, mestre em astúcias” (v. 23). Ele cresceria em poder até que, por fim, insurgir-se-ia “contra o Príncipe dos príncipes” (v. 25). Não obstante, ele não poderia prevalecer e seria destruído pelo Senhor (v. 25; cf. 7.26; 9.27).
Esse mesmo personagem aparece mais uma vez no capítulo 11 do relato de Daniel. Dessa vez, ele é visto como um rei que “fará o que bem entender” (v. 36). Ele assumirá um papel de superioridade acima de todos os deuses e ousará blasfemar o Senhor Deus. Esse pretenso deus, após ser inicialmente bem-sucedido em dominar as nações vizinhas dele, será ele mesmo dominado — “ele chegará ao seu fim, e ninguém o socorrerá” (v. 45). O personagem recém-descrito é, em geral (e corretamente), identificado como Antíoco IV Epifânio, rei selêucida da Síria de 175 a 164 a.C. Mas ele, claramente, apenas prenunciou o perverso governante dos tempos escatológicos a respeito do qual Daniel já falou diversas vezes (7.24-26; 8.23-25; 9.26,27). O Novo Testamento conhece-o como o anticristo, quer por meio desse termo (ljo 2.18,22; 4.3; 2Jo 7), quer de seu papel como oponente do Senhor e seus propósitos reais (cf. 2Ts 2.1-12; Ap 13.1-10; 19.19-21). Só a teologia do Antigo Testamento não permite essa precisão, mas uma coisa fica clara: as forças do governo do homem contrárias a Deus, um dia, serão lideradas, ou pelo menos sintetizadas, pelo personagem ditatorial que fará uma última tentativa de destronar o Senhor do céu, mas fracassará totalmente em fazer isso.11 A derrota dele e das instituições humanas ímpias que ele representa conduzirá ao glorioso Reino de Deus.
O REINO DOS CÉUS
Nos períodos exílico e pós-exílico da história de Israel, a comunidade da aliança não vivia mais em relativo isolamento das grandes nações circunvizinhas; na verdade, ela foi incorporada por elas. Como resultado disso, os judeus pensavam muito mais em termos universais, no escopo de um mundo muito maior e mais abrangente do que era o caso antes. Essa visão de mundo aprimorada também impactou a forma deles entenderem e descreverem seu Deus. Ele não era mais apenas o Senhor de Israel, mas o Deus dos céus e da terra. Essa perspectiva mais abrangente reflete-se nos epítetos divinos empregados na literatura posterior do Antigo Testamento, como “Deus dos deuses” (Dn 2.47), “Altíssimo” (Dn 4.34) e “Deus dos céus” (Ne 1.5; 2.4,20). Assim, o derradeiro conflito não era entre as deidades babilônias e persas, de um lado, e o Deus de Israel, de outro lado; antes, era a soberania do Deus de todo o universo que estava sendo desafiada pelos governos dos homens e seus deuses. A soberania de Deus (a ser considerada a seguir) é um tema proeminente no relato de Daniel — e, com certeza, pressupõe um Reino celestial — mas o Reino, como tal, encontra clara expressão em apenas duas passagens do livro, a saber, Daniel 2.44,45 e 7.26,27. O profeta informou Nabucodonosor que depois que os reinos deste mundo tivessem passado, “o Deus dos céus estabelecerá um reino que jamais será destruído” (2.44). Na verdade, o Reino do Senhor derrotaria todos os reinos deste mundo e poria em vigor o governo perfeito de Deus. A seguir, o Senhor, alinhado com seus propósitos da criação, poria em posições de responsabilidade seu povo especial, os “santos, o povo do Altíssimo” (7.27). Foi-lhes confiado “a soberania, o poder e a grandeza dos reinos que há debaixo de todo o céu” (v. 27). Por fim, a ordem da criação: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra” (Gn 1.28), seria cumprida.
DEUS COMO SOBERANO
É óbvio que o Reino de Deus requer o conceito de Deus como Rei, o governante sobre todas as coisas criadas.12 Claro que Daniel conhecia o Senhor como tal, mas é importante observar que algumas das afirmações mais enérgicas dessa verdade saíram dos lábios de monarcas pagãos. Nabucodonosor, depois de conhecer o sentido da imagem de seu sonho, confessou a Daniel: “Não há dúvida de que o seu Deus é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis” (Dn 2.47). E ele, logo depois do salvamento dos três jovens judeus da fornalha em fogo, foi compelido a louvar o Deus deles e a admitir que “nenhum outro deus é capaz de livrar alguém dessa maneira” (Dn 3.29). Depois, o mesmo rei, em duas declarações de gratidão ao Deus de Israel, referiu-se a ele como “o Deus Altíssimo” cujo “reino é um reino eterno” e cujo “domínio dura de geração em geração” (Dn 4.2,3). Ele, Nabucodonosor, tem de “louv[ar], exalt[ar] e glorific[ar] o Rei dos céus, porque tudo o que ele faz é certo, e todos os seus caminhos são justos” (v. 37). O rei Dario (o meda; cf. Dn 5.30) não ficou menos convencido da soberania do Senhor. Ele, depois de testemunhar a libertação de Daniel da cova dos leões, ordenou que só o Deus de Daniel fosse adorado, “pois ele é o Deus vivo e permanece para sempre; o seu reino não será destruído, o seu domínio jamais acabará” (Dn 6.26). No que diz respeito ao assunto, o fato de ele, ou Nabucodonosor, ter crido no que disse e, assim, ter se convertido ao iavismo é bastante irrelevante para o ponto de que, pelo menos, os dois estão no registro como tendo declarado que o Senhor é Deus e que eles e toda a humanidade devem se submeter à soberania dele.
—- Retirado de: Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento