“Atendei, agora, vós que dizeis: Hoje ou amanhã, iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos, e teremos lucros. Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois, apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa. Em vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como também faremos isto ou aquilo“ (Tiago 4:13-15).
Quando cristãos reformados dizem que somente a Escritura é a Palavra de Deus, inerrante e suficiente como base para fé e prática cristã, eles não estão dizendo que a Bíblia explique tudo que há para saber sobre todas as coisas, nem que ela seja suficiente como base de conhecimento técnico para outras áreas, como a matemática, a engenharia, a medicina, etc.
Você compreende isso? Você compreende que a Bíblia não ensina sobre qual é a melhor forma de lavar o seu cachorro, a melhor forma de garimpar ouro, a melhor forma de aprender um novo idioma, etc.? Isso é bastante básico, não é? A Bíblia simplesmente não se apresenta como um manual técnico para todas as coisas, e os cristãos bem esclarecidos sabem disso.
No entanto, na prática, muitas e muitas vezes, em certos debates, isso parece desaparecer da cabeça dos cristãos. Esse é o caso da acusação de alguns cristãos contra outros cristãos no que se refere à economia, mais especificamente ao processo de produção capitalista.
Antes de continuar, quero definir duas coisas aqui:
- Em discussões envolvendo esquerdistas, é comum que cada lado fique usando uma definição completamente diferente sobre capitalismo, o que faz com que não seja nem sequer possível chegar a qualquer lugar. Se você fizer isso aqui, estará repetindo o mesmo absurdo. Então, use a minha definição, ou seja, trate especificamente do assunto que eu estou querendo tratar, que é: livre mercado = pessoas fazendo trocas livres usando seus próprios recursos, seja a mão de obra, dinheiro ou meios de produção. Se você pensar em qualquer outra coisa, pode ser que simplesmente este texto inteiro não seja mais aplicável.
- Sobre os cristãos que acusam outros cristãos, não vou me referir a qualquer tipo de crente. Estou pressupondo cristãos verdadeiramente convertidos, crentes em Jesus – e vou ter em mente especialmente os cristãos reformados como eu, os calvinistas (apenas para que não haja dúvidas quanto a quem eu me dirijo).
Entre os reformados, há um certo consenso – no qual me incluo – de que o comunismo é um completo absurdo e que o capitalismo é indispensável. Não vou levar em conta exceções, pois quero lidar com o que é comum.
Nós vemos na própria Bíblia vários exemplos interessantes, como a parábola dos talentos, onde os elogiados foram os que encontraram a melhor maneira de fazer o dinheiro prosperar (Mt 25:20-30), ou ainda o exemplo da passagem acima em Tiago, ao sugerir que o cristão, desde que compreenda que Deus é soberano, pode programar seus lucros sem nenhum problema (Tg 4:13-15).
Eu não quero discutir aqui, por falta de espaço, a coisa mais óbvia: que o sistema capitalista é legítimo e o que melhor possibilita a produção de riqueza (não estou falando de dinheiro, pois dinheiro não é riqueza – produção de riqueza = desenvolvimento de bens e serviços). Vou, então, afirmar outra vez: o livre mercado é modelo que, de longe, traz maior aumento de conforto, diminuição de preços (quanto não há monopólio, pois se há, não é livre mercado) e, consequentemente, a diminuição da miséria no mundo. Se você acha que há outro meio melhor, então, ou você não tem a menor noção sobre economia ou você tem uma resposta que a humanidade nunca viu até hoje. Logo, vou pressupor o capitalismo (na definição que eu dei) como melhor meio para prosseguir, ok?
A propósito, repartir os bens é uma ideia cristã também, mas repartir é diminuir, que é o contrário de produzir, e aqui estou falando de produzir. Primeiro você produz, depois você reparte.
O ponto é este: não há contradição alguma entre ser cristão e compreender que existe um meio específico que é melhor que todos os outros com relação à economia. Quando um cristão assinala sua convicção a favor do capitalismo como melhor meio de produção de riqueza que, por consequência natural, torna-se o meio mais eficiente de reduzir a miséria econômica no mundo, ele não está de maneira nenhuma sendo um idólatra do capitalismo, um idólatra do mercado, um idólatra dos bens materiais.
Sem dúvida, pode ser o caso, sim, de um cristão não perceber que está projetando no capitalismo uma esperança escatológica. Mas isso seria uma questão paralela, uma questão à parte e de maneira alguma intrínseca à afirmação de que o capitalismo potencialmente é o causador da diminuição da pobreza no mundo – como de fato é.
No início, eu expliquei como a afirmação de que a Bíblia é a revelação completa e suficiente não significa que ela resolva todas as questões ou trate sobre tudo, não foi? Pois bem, se você descobrir a melhor maneira possível de fazer café, de assoviar alto, de tratar do Alzheimer ou qualquer outra coisa, e disser que “a melhor forma possível de fazer” tal coisa é “x”, isso não será idolatria, tanto quanto não é idolatria entender que o capitalismo seja o melhor meio de combater a pobreza no mundo.
Você tem todo o direito de discordar de que o capitalismo (da forma que eu defini) seja eficiente e pode até tentar pensar em maneiras melhores do que a que eu expliquei: pessoas voluntariamente, usando seus próprios recursos, suprindo as demandas uns dos outros em troca de também terem suas demandas supridas. Você pode considerar, se achar mais bonito (e se achar mesmo que a estética resolve esse tipo de coisa), que repartir os bens é mais eficiente do que produzir muito mais. O que você não pode fazer é chamar de idólatra quem pensa que as trocas voluntárias sejam um incentivo muito melhor para esse fim. Pois essa afirmação se refere especificamente à questão material e não a uma questão espiritual, tampou trata dos anseios da alma ou dos motivos que levam o homem a ter tais anseios.
Quando você ouvir um cristão anarcocapitalista, como eu, falar sobre economia, faça o mínimo que se espera e não misture os assuntos; pressuponha que a fé deles é em Jesus mesmo e que eles não estão falando que se a economia melhorar isso resolverá todos os problemas da humanidade. Porque realmente nenhum anarcocapitalista pensa nada parecido com isso, quanto menos os cristãos.