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A Teologia do livro de Levítico

A mensagem de Levítico precisa ser entendida à luz da situação histórica em que o livro foi apresentado a Israel, durante o ano que transcorreu entre a chegada ao monte Sinai e a partida em direção a Canaã, enquanto o tabernáculo estava sendo construído. Era de esperar que o Deus que oferecera projetos tão minuciosos para cada peça do tabernáculo, no qual habitaria entre Seu povo, oferecesse igualmente instruções detalhadas para o culto que possibilitaria a Israel aproximar-se dEle. À luz do contexto histórico em que o livro foi escrito, pode-se atribuir heuristicamente 4 o seguinte propósito ao livro de Levítico: Promover reverência nacional e individual à santidade de Yahweh, apresentando as condições que permitem a Israel aproximar-se dEle e preservar a Sua presença santa entre o povo escolhido.

A ênfase gritante do livro é a santidade de Yahweh e a exigência daí derivada de que Israel seja santo em todos os seus relacionamentos, tendo em vista sua vida como povo da aliança em Canaã. De fato, em certo sentido, Levítico completa Êxodo ao apresentar uma lista de bênçãos e maldições (cap. 26), que era uma característica dos já famosos tratados de suserania. A primeira parte do livro revela o projeto divino para que Israel se achegue a Yahweh (caps. 1–7). Um breve interlúdio histórico revela os riscos de violar a santidade de Deus (caps. 8–10). A segunda parte trata dos meios pelos quais Israel desfrutaria comunhão com Yahweh, rejeitando a vida pregressa no Egito e o estilo de vida que os aguardava em Canaã (cf. 19.27-31). A mensagem do livro é a seguinte: A presença santa de Yahweh entre Seu povo exige purificação regular por meio de sacrifícios apropriados e separação nacional de toda sorte de impureza.

A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Em contraste com Gênesis e Êxodo, em que as narrativas produziam farto material dos quais se poderiam derivar traços subjacentes do caráter divino ou de princípios divinos de ação, Levítico tem um mínimo de narrativa e um máximo de legislação. Estes, no entanto, oferecem percepções significativas da pessoa e do caráter de Deus em Seu relacionamento com o povo e na provisão que faz para que a comunhão pactual seja preservada.

O versículo-chave do livro é um mandamento límpido de Yahweh. Sereis santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo (19.2). Santidade significa separação de alguma coisa para um propósito ou uso. No caso de Yahweh, significa Sua separação do mal em toda e qualquer de suas formas. O objetivo dessa legislação, como também a razão da narrativa chocante da morte de Abiú e Nadabe, no capítulo 10. Assim, a comunhão desejada (ou melhor ordenada) por Yahweh com Seu povo dependia da assimilação de Seu conceito de santidade pelos israelitas. Esse conceito era radicalmente oposto ao uso do termo שֶ ד ֹק) qōḏeš, ―santidade‖) pelos cananeus, para quem ser ושֹדָק) qāḏôš, ―santo‖) significava envolver-se com as formas mais degradantes de imoralidade, como ser prostituto ou prostituta cultual. Israel, ao buscar os padrões divinos de santidade, teria de deixar para trás a forma de ser ל ֹח) ḥōl, ―comum‖ ou ―profana‖), ir além da forma neutra de ser ֹֹ הרָט) ṭā ōr, ―limpo‖), para chegar à vida de identificação positiva com a pureza, a vida הָ ושֹדְּ ק (qeḏôs , ―santa‖). Em muitos casos, a santidade era relacionada ao status cerimonial na comunidade, e o indivíduo e, até mesmo, toda a comunidade poderiam precisar progredir da forma de vida mais baixa, אֵמָט) ṭāmēʾ, ―impura‖), para cima, em direção ao perdão e aceitação de Yahweh.

Deus é imanente O propósito de Deus, expresso nas palavras de Êxodo 25.8, era viver entre o Seu povo. As instruções detalhadas concernentes ao lugar de Sua manifestação, oferecidas em Êxodo, são seguidas de instruções igualmente detalhadas sobre como preservar o privilégio de Sua presença, encontradas em Levítico. Outras nações do Oriente Médio antigo compartilhavam o conceito de ter a divindade nacional habitando no meio do povo. Israel, todavia, se destacava entre elas por desfrutar a presença de Yahweh por meio de um culto puro – cerimonial e eticamente puro – de modo a refletir o caráter santo de seu Deus. Outro aspecto merece ser observado, pois além da presença gloriosa manifestada acima da arca da aliança no Santo dos Santos, havia uma presença geral, santificadora, que afetava e impunha exigências sobre a religião de Israel (caps. 21–24), sobre os padrões de comportamento sexual (caps. 18 e 20), e sobre as relações interpessoais (caps. 19 e 25) dos israelitas.

Em Levítico, nove vezes a frase וֹלֹחַלְּ סִׁנְּו) = wenisl ḥ lô, ―e ser-lhe-á perdoado) apresenta a maravilhosa realidade de que Deus havia providenciado o perdão para algum tipo de deficiência (4.20, 26, 31, 35; 5.10, 13, 16, 18; 6.7). Isso aponta para o fato de que havia uma eficácia espiritual nos sacrifícios que Yahweh graciosamente planejara e revelara a Israel. Uma vez que Seu propósito não era simplesmente libertar Israel do caos e da desordem da escravidão corporal no Egito, mas também do caos e da desordem de uma vida dominada pelo pecado, pela doença e pela morte, o sistema sacrificial transmitido à nação por Moisés englobava cada aspecto da vida e fazia provisão para impurezas morais e cerimoniais por meio do princípio de expiação vicária (i.e., substitutiva). O perdão de Yahweh sempre foi gratuito, mas nunca barato, já que sempre envolveu a entrega de uma vida em lugar de outra, com o benefício sendo apropriado mediante a fé. O ponto culminante da graça de Yahweh na vida da nação ocorria no chamado (―Dia da Expiação‖ (יםִׁ פורִׁ ּכַהֹוםֹי ,o tradicional yôm ḵ ip pûrîm, cf. 23.27), quando os pecados de todo o ano eram expiados e, figurativamente, ―despachados‖ para o deserto, removidos da vista da congregação. O retorno do sumo sacerdote do Santo dos Santos significava que Yahweh havia graciosamente estendido a Sua presença e proteção sobre a nação por mais um ano.

A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

Levítico não contém muitos elementos narrativos por meio dos quais seja possível estabelecer como se dá a atividade de Deus na História. O decreto de permitir o mal fica implícito nas descrições dos sacrifícios e das deficiências espirituais que os motivavam, bem como nas longas listas de alimentos e práticas proibidos, que revelam tanto a alienação da criatura de seu Criador quanto a alienação entre criatura e criatura. O juízo contra o mal transparece no sistema de expiação vicária, em que vida é preço de vida diante de um Deus santo e justo. O incidente dramático de Nadabe e Abiú serve para indicar, de maneira clara, a importância da absoluta fidelidade às estipulações da aliança, mesmo àquelas que parecessem mais banais. O contexto sugere os crimes de usurpação de autoridade, insubordinação à legislação pactual e possível embriaguez, um contraste marcante com o ideal de santidade exigido de quem se propunha a servir perante Yahweh. Encontra-se o mesmo rigor nas maldições contra a desobediência pactual prometidas em 26.14-39. O livramento por meio da semente escolhida não recebe grande ênfase em Levítico, em que apenas a restauração da nação, depois do castigo pela desobediência (26.40-45), pode ser diretamente relacionada a esta linha do plano mestre de Yahweh. A bênção aos eleitos, por fim, transparece no desfrute da Terra Prometida e da comunhão com Yahweh por meio da obediência pactual (26.1-13). Israel possui a certeza, todavia, de que Deus jamais a abandonaria, nem descartaria as promessas pactuais feitas a Abraão (26.44, 45).

OUTROS ASPECTOS TEOLÓGICOS IMPORTANTES EM LEVÍTICO

A questão da eficácia dos sacrifícios mosaicos tem sido por longo tempo discutida, mas sem uma resposta definitiva que agrade a todos os lados do debate. Por amor à brevidade, é melhor afirmar o seguinte com respeito aos sacrifícios mosaicos.

1. Os sacrifícios foram meios suficientes e necessários dados por Deus para que Israel mantivesse comunhão com Ele. Sua significância eterna está além de seu próprio escopo, dependendo da provisão maior feita por Deus em Cristo. 2. Os sacrifícios tinham uma natureza dupla, pois operavam tanto na esfera pactual nacional quanto na esfera individual. 3. Os sacrifícios mosaicos eram válidos na esfera pessoal apenas quando motivados por fé em Yahweh, como o Perdoador de pecados, em uma atitude de obediência a Sua revelação. 4. Os sacrifícios eram aceitos sem a necessidade de fé pessoal na esfera de participação cerimonial na comunidade da aliança.5 5. Os sacrifícios eram limitados em seu escopo e eficácia a atos pecaminosos e a culpa deles decorrente até a ocasião em que eram oferecidos, mas não tinham qualquer eficácia contra a culpa imputada ou a natureza pecaminosa. 6. Pecados premeditados ou violações deliberadas das estipulações pactuais não podiam ser expiados por sacrifícios regulares, e seu perdão era questão exclusiva da graça divina em resposta ao arrependimento, operando por meio da provisão do Dia da Expiação. 7. A eficácia dos sacrifícios era derivativa, sendo confirmada por Deus na base do sacrifício perfeito que seria oferecido na cruz do Calvário

Estas sete afirmações respondem adequadamente os pontos de vista de teólogos ―radicais‖ que adotam uma visão evolutiva da religião de Israel e, muitas vezes, referem-se ao sistema sacrificial como ―a religião do açougue‖, supostamente um anacronismo politeísta que os profetas eticamente mais avançados de datas posteriores passariam a denunciar. Tal visão do sistema sacrificial deve ser rejeitada pelos argumentos a priori que apresenta e pela sua falta de visão contextual, pois não percebem que os profetas condenam não um ritual errado, mas uma atitude errada para com Deus e para com o ritual por Ele ordenado. Elas corrigem, ainda, uma opinião extremamente comum entre os conservadores, de que os sacrifícios meramente cobriam [com apelos etimológicos ao verbo hebraico רַפָכ) ḵāp r, ―cobrir‖)] os pecados anteriores à cruz, mantendo a culpa em suspenso até que o perfeito sacrifício fosse oferecido. Este ponto de vista não entende apropriadamente as inequívocas garantias de perdão nos capítulos 4–6 e nas descrições do Dia da Expiação (caps. 16 e 23).

Levítico 23 é o capítulo chave quanto aos festivais religiosos em Israel do ponto de vista do adorador (Números 28 e 29 tratam das mesmas festas do ponto de vista dos sacerdotes que as celebravam). O número das festas varia de acordo com os comentaristas, mas para preservar o número sete, este autor fez distinção entre Páscoa e pães ázimos e considerou Primícias uma festa separada. Assim, havia quatro festas durante a primavera (aproximadamente entre março e junho), e três festas durante o outono (todas concentradas em setembro-outubro). Algumas das festas religiosas de Israel tinham paralelos nas religiões pagãs das nações circunvizinhas, particularmente as festas relacionadas à colheita. Em Israel, todavia, a pessoa única de Yahweh dava sentido especial a cada uma das festas, pois elas relembravam, cada uma a sua maneira, o caráter e as ações de Yahweh em favor de Israel. A Páscoa o celebrava como o grande Redentor; os pães ázimos celebravam a Sua Santidade e a separação entre o velho pão (estilo de vida) e o novo (cf. 1 Co 5.8). Nas Primícias, Yahweh era celebrado como o Provedor (o primeiro molho de cevada simbolizava a esperança de uma colheita farta). Pentecostes (ou mais exatamente a Festa das Semanas) era uma celebração ligada às Primícias, o mesmo tema de provisão, mas desta vez pela alegria com o término da colheita de cereais. As festas de outono eram três, todas celebradas no mesmo mês, Tisri, equivalente a setembro-outubro. A Festa das Trombetas iniciava o ano civil com descanso e sacrifícios recordando o favor de Yahweh para a nação durante o ano anterior. O Dia da Expiação celebrava Yahweh como o Purificador da nação, o qual afastava de Israel a Sua própria ira santa contra o pecado. A última festa fixa (דֵועֹמ ,môʿēḏ) era a alegre Festa dos Tabernáculos, que celebrava Yahweh como Sustentador e Guia na peregrinação. O quadro a seguir resume as festas fixas de Israel.

Teólogos e comentaristas conservadores não são concordes quanto à natureza e função da tipologia. Abusos passados produziram certa aversão ao próprio termo. Apesar disso, a maioria poderia endossar a seguinte definição: Um tipo é uma realidade especial do Antigo Testamento que, apoiada em uma promessa e reordenada por Deus, serve como ilustração específica de uma verdade revelada no Novo Testamento. Devido à instituição divina e ao papel que desempenhava no perdão de pecados na dispensação mosaica, o sistema tipológico israelita tornou-se solo fértil para identificações tipológicas, às vezes infundadas. A título de exemplo, e sem procurar estabelecer moldes tipológicos, o quadro a seguir apresenta uma visão tipológica da pessoa e obra do sumo sacerdote, um tipo indiscutível por ser assim usado no Novo Testamento.

ARGUMENTO BÁSICO

A ênfase maior do livro é a santidade de Yahweh e a conseqüente exigência de santidade por parte de Seu povo. O significado básico dessa santidade é a separação em um sentido físico, mas com evidentes conotações morais e cultuais no livro. Levítico é obviamente parte de um pacote revelador, iniciado em Êxodo 20, em vista da relação de bênçãos e maldições encontradas no capítulo 26. O livro prescreve as condições para que Israel desfrutasse a presença e a bênção de Deus; várias passagens sugerem que a legislação já contemplava a vida de Israel na Terra Prometida (particularmente, os capítulos 25 e 26). A primeira parte do livro revela a maneira escolhida por Deus para que Israel se aproximasse Dele, o sistema sacrificial. Vida por vida é o princípio subjacente em cada sacrifício, os consagratórios (capítulos 1 e 2), os voluntários (capítulo 3) e os expiatórios (capítulos 4.1 – 6.7). Instruções específicas para a celebração de cada um desses sacrifícios aparecem nos capítulos 6.8–7.38. O sistema sacrificial é inaugurado nos capítulos 8 a 10, em que Arão e seus filhos são consagrados por Moisés. Uma terrível tragédia acontece e serve para revelar quão seriamente Yahweh lidava com a questão da santidade e a separação do pecado (10.1- 7). A segunda parte do livro descreve a maneira pela qual Israel experimentaria comunhão com Yahweh, ou seja, andando em santidade, separados das antigas práticas abomináveis do Egito e das futuras práticas abomináveis de Canaã, para onde Yahweh os levaria (19.27-31). Israel deveria primeiramente separar-se de toda forma de impureza. Esses regulamentos, a maior parte deles relacionada ao âmbito físico, comunicavam a necessidade da nação viver de modo diferente de seus futuros vizinhos (11.1–16.34). Regulamentos sobre dieta e higiene revelavam o cuidado de Yahweh pela saúde e bem-estar de Seu povo, ao mesmo tempo em que retratavam o alto valor da vida e seu custo expresso em sacrifícios substitutivos. A dramática necessidade de purificação era suprida pelo Dia da Expiação, a cerimônia anual por meio da qual os pecados nãoidentificados da nação eram perdoados com base no sangue derramado (16.1-34). Nesse dia crucial, fazia-se expiação pelo sumo sacerdote, pelo tabernáculo, pelo altar e pelo povo, e um bode (designado pela palavra Azazel [לֵאזָזֲע ,ʿăzāʾzēl], provavelmente derivada das palavras hebraicas para ―bode‖ [זֵע ,ʿēz] e ―partir‖ [לַזָע ,ʿāz l) 6 levava simbolicamente os pecados da nação para o deserto; essa complexa cerimônia permitia que Israel desfrutasse a presença de Yahweh por mais um ano. Não é de espantar, assim, que a descrição do Dia da Expiação seja seguida por uma divisão menor dedicada à importância crucial do sangue na vida de Israel (17.1-16). Essa segunda parte continua com a aplicação desde o princípio de santidade ou de separação até os relacionamentos interpessoais na comunidade da aliança. A primeira área em que Israel deveria se distinguir era a área sexual (18.1-30), o que em si não é surpreendente, à luz da extrema corrupção do estilo de vida dos cananeus. Incesto (18.6- 18) e perversão (18.19-23), em suas diversas formas, eram proibidos em Israel. O versículo chave do livro, 19.2, aparece em uma divisão do livro em que o caráter santo de Yahweh é aplicado a uma variedade de áreas da vida, tanto religiosas (19.3-8) quanto seculares (19.9-18). Santidade era um assunto tão vital para Israel que, quando Israel estivesse na Terra Prometida, a pena capital era a medida necessária para garantir sua busca (capítulo 20). Uma vez que, em grande parte, a vida de santidade de Israel dependia da qualidade moral de seus sacerdotes, dois capítulos são especialmente dedicados aos padrões para suas qualificações e conduta (21.1–22.33). A santidade também dependia, por parte de Israel, da lembrança constante de sua relação pactual com Yahweh, e este era um dos principais propósitos das santas convocações, as festas do calendário religioso de Israel. Elas recordavam eventos passados e apontavam profeticamente para a consumação das promessas pactuais de Israel no escathon (capítulo 23). A punição de um homem que havia blasfemado por amaldiçoar a Yahweh oferece um segundo exemplo da natureza crucial da santidade, ou conformidade aos padrões de Deus (24.10-23). À medida que Yahweh antevê a entrada de Israel em Canaã e a conquista da Terra Prometida, Ele descreve o tipo de comportamento que será coerente com Seu caráter santo (25.1–27.34). Os princípios do descanso sabático e do resgate (ou redenção) deveriam governar o uso e a propriedade da terra e da vida humana, pois tanto a terra quanto a vida pertencem a Yahweh (capítulo 25). A promessa das bênçãos da aliança e a ameaça das maldições da aliança eram designadas a motivar Israel à santidade (capítulo 26). A santidade de Yahweh era de tal ordem que mesmo aquilo que fosse votado a Ele acima e além das exigências da aliança não podia ser tratado levianamente (capítulo 27). Esse capítulo, considerado por muitos uma porção deslocada da Escritura, realmente oferece o ápice adequado a essa revelação do caráter santo de Yahweh. Ele é digno de muito mais do que tudo que temos, e o que a Ele alguém consagra, não deveria ser levianamente tomado de volta.

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