O profetismo foi um fenômeno abundantemente atestado no mundo do Oriente Próximo da Antiguidade e em várias culturas e de várias formas. Muito fundamentado como era em sistemas de pensamento e prática religiosos em variados modelos bíblicos, seus alegados porta-vozes dos deuses no profetismo deviam ser evitados em Israel, e as técnicas deles, repudiadas. Infelizmente, esse não era sempre o caso, e, por isso, o Antigo Testamento está repleto de orientações de como reconhecer os falsos profetismo e ordens a fim de eliminá-los da vida israelita.
O primeiro exemplo é o de Balaão que, embora não seja descrito pelo termo nãbi era claramente algum tipo de adivinhador ou vidente, um pagão contratado pelo rei de Moabe para amaldiçoar o povo de Israel (Nm 22— 24). Ele foi de Petor (acadiana Pitru), próxima de Mari, no Eufrates, local em que foram encontrados muitos textos proféticos detalhando as técnicas de adivinhação e de encantamento desenvolvidas por Balaão. A maioria dos outros falsos profetas não-israelitas mencionados no Antigo Testamento emergiram de fontes cananeias e eram continuamente a meta dos verdadeiros profetas de Israel, que, vez após outra, advertiam a nação para evitá-los e não absorvê-los (cf. lRs 18.16-40).
No entanto, o maior perigo não vinha de fora de Israel, mas dela mesma. Moisés advertiu contra profetas que surgiriam entre o povo de Deus e que profetizariam em nome de outros deuses ou profetizariam mentiras em nome do Senhor. Duas importantes passagens, ambas de Deuteronômio, tratam dessa grave ameaça. Em Deuteronômio 13, Moisés diz que mesmo que um profeta de sonhos consiga realizar sinais e maravilhas para autenticar sua mensagem, se essa mensagem fosse designada a levar à adoração de outros deuses, o profeta devia ser considerado falso. Em outras palavras, os sinais autenticadores só eram válidos se estivessem alinhados com a verdade de que o Senhor é Deus e de que só ele deve ser adorado. Na verdade, o Senhor mesmo permitia aos charlatães a habilidade de operar essas maravilhas a fim de que ele pudesse conhecer (mais exatamente, a fim de que eles pudessem conhecer) o profundo amor de Israel por ele (w. 1-4). Para um profeta israelita, apostatar tão notoriamente era um ato impensável de traição e de rebelião, ato que exigia nada menos que a pena de morte (v. 5). Não se podia demonstrar misericórdia, nem mesmo se o falso profeta fosse membro da própria família, pois o bem-estar da comunidade estava acima de qualquer outra consideração de parentesco ou afeto familiar natural (w. 6-11). Além disso, qualquer cidade que abrigasse falsos profetas e se recusasse a entregá-los para os líderes de Israel devia ser posta sob hêrem, ou seja, devotada ao Senhor em um ato de destruição total (w. 12-18). Não pode haver erro aqui em relação à atrocidade do pecado dos profetas que, a despeito de todos os sinais em contrário, estavam predeterminados a desviar o povo de Deus.
Em outra passagem de Deuteronômio 18, Moisés primeiro advertiu o povo de Israel contra imitar as abomináveis práticas dos cananeus, em especial, em termos dos artifícios proféticos deles e, depois, falou de uma ordem de profetas a vir de Israel. Como na passagem anterior, o povo de Deus deve estar alerta porque não devem permitir “que se ache […] alguém entre vocês que queime em sacrifício o seu filho ou a sua filha; que pratique adivinhação, ou se dedique à magia, ou faça presságios, ou pratique feitiçaria ou faça encantamentos; que seja médium, consulte os espíritos ou consulte os mortos” (Dt 18.10,11). Mais uma vez, a questão não era tanto os profetas cananeus per se, mas a tendência de Israel de imitá-los, na verdade, eles tendiam a trapacear em todos os aspectos da vida.
Eles, em contraste contundente, deviam relembrar como Deus se revelara a Moisés no Sinai, uma revelação direta que não exigira nenhum dos artifícios manipulativos típicos do profetismo pagão. E quando Moisés saiu de cena, esse tipo de profetismo mosaico continuaria na forma de um profeta semelhante a ele, ou seja, uma ordem de profetas que, como Moisés, receberia uma palavra do Senhor sem maquinação nem ambiguidade humanas. Seria uma revelação verbal, recebida em palavras e a ser transmitida pelas palavras (Dt 18.14-19). Todavia, se esse profeta falasse a partir de seu próprio coração, e não como o porta-voz de Deus ou falasse em nome de outros deuses, deveria ser morto (v. 20). A seriedade do ofício profético estava além de qualquer discussão.
Ainda permanece a pergunta: como poder-se-ia testar a credibilidade de um profeta como verdadeiro porta-voz do Senhor? De acordo com Deuteronômio 13, ele provaria ser uma fraude ao pregar uma mensagem que defendesse a adoração de outros deuses (w. 1-5). Aqui o teste era se o que eles profetizavam viria a acontecer (v. 22). Portanto, alguém podia profetizar em nome do Senhor e ainda sugerir submissão às exigências dele da aliança e, ainda assim, provar ser um falso profeta. Nesse segundo teste, também havia o elemento da predição, elemento esse que até esse ponto foi de pouco interesse na definição do ministério profético. Bem, a habilidade ou inabilidade em predizer eventos futuros sustentava o profetismo genuíno.
Como aplicar esse teste em todas as situações é algo problemático. Em casos de curto prazo, isto é, durante o tempo de vida do próprio profeta, as predições que ele fazia ou o que dizia que aconteceria em sua própria época era facilmente verificado — ou aconteciam ou não. O profeta Ananias é um caso pertinente (Jr 28.1-17). Ele, em contraposição a Jeremias, sustentou que o exílio babilônio, que já estava em andamento, duraria pelo período de dois anos e que todo o mobiliário pilhado do templo retornaria a este (w. 1-5). Jeremias já predissera um exílio de setenta anos (Jr 25.11,12), predição que repetiu depois de transcorridos os dois anos previstos por Ananias (29.10). Transcorrido esse tempo, Ananias morreu, cumprindo-se, assim, uma predição de Jeremias (28.16,17); mas os setenta anos previstos por Jeremias ainda não haviam sido cumpridos na época da morte deste. Assim, não havia outra forma de validar as declarações proféticas de Jeremias para o futuro distante que não fosse ele ser justificado pelo futuro próximo, como no caso de sua predição da morte de Ananias.18 Mais tarde, Daniel não teve receio em relação à reputação de Jeremias, pois perto do fim do período dos setenta anos, ele “compreend[eu] pelas Escrituras, conforme a palavra do Senhor dada ao profeta Jeremias, que a desolação de Jerusalém iria durar setenta anos” (Dn 9.2).
O próximo movimento em direção à compreensão da revelação por intermédio de profetas gira em torno de Samuel, o aparente fundador de uma ordem de profetas. Samuel, consagrado pela mãe ao serviço do Senhor, estava em treinamento sacerdotal quando o Senhor o chamou para ser profeta (lSm 3.1- 21). Até aquela época, os profetas viviam e ministravam sozinhos, intervindo nas situações quando era necessário. Agora, sob Samuel, o profetismo decididamente assumiu um caráter distinto, um caráter que pode ser descrito com acerto como movimento. Em pouco tempo, Samuel, a despeito da infrequência da revelação profética, veio a ser reconhecido em toda a Israel como um verdadeiro profeta do Senhor. Ele passou no teste de autenticidade — o Senhor “fazia com que todas as suas palavras se cumprissem” (sentido literal, nenhuma de suas palavras deixou de ser cumprida) — e isso tornou óbvio para todos que ele era o receptor e o transmissor de revelação verbal (w. 19,20). Que houve uma mudança sutil com a inauguração do ministério de Samuel é indicado pela observação do historiador de que “antigamente em Israel, quando alguém ia consultar a Deus, dizia: ‘Vamos ao vidente’, pois o profeta de hoje era chamado vidente” (ISm 9.9). Isso não é tanto uma mudança fundamental na própria instituição quanto uma mudança de ênfase ou foco, pois algumas pessoas eram chamadas de profeta e vidente (por exemplo, “Gade, o vidente dele [Davi]”; 2Sm 24.11). A palavra vidente é uma tradução das formas participiais hãzãh ou rã’ãh, ambos com sentido literal de “ver”, em geral, no sentido mundano e normal. Esses termos, quando usados tecnicamente no profetismo, enfatizam o lado receptor da revelação, ao passo que nãbi’, termo muito mais comum, enfatiza a função proclamadora. Claramente, os dois aspectos são essenciais para o ministério pleno de um verdadeiro profeta do Senhor.
A primeira referência ao que pode ser denominado profetismo “institucionalizado” ou organizado vem do próprio Samuel, que contou a Saul que um dos sinais de que Deus chamou este a ser rei era o fato de ele encontrar um bando (hebraico, hebel) de profetas descendo de um lugar alto tocando instrumentos e profetizando (ISm 10.1-7). O Espírito viria sobre ele; e ele também começaria a profetizar, assegurando-lhe, assim, que fora dotado dos dons exigidos para a realeza. Aqui, o ato de profetizar não tem nada que ver com predição nem mesmo com proclamação, mas, como a forma verbal sugere, com pronunciamento estático inspirado pelo Espírito de Deus (cf. Nm 11.25).20 A mesma forma verbal ocorre depois para descrever os seguidores fiéis de Saul e este mesmo enquanto tentavam prender o sitiado Davi, que estava sob a custódia protetora de Samuel em Ramá (ISm 19.18-24). Nesse caso, eles foram subjugados pelo Espírito de Deus e caíram prostrados em ataques convulsivos de êxtase profético.
O que Saul e seus homens viram em Ramá foi um grupo de profetas profetizando, “dirigidos por Samuel” (v. 20). Esse grupo (aqui lahãqâ) é o mesmo mencionado em 1 Samuel 10.5. Como e por que Samuel os reuniu inicialmente, no que constituía o treinamento deles (talvez, pelo menos, música, cf. ISm 10.5), como eles funcionavam sob a liderança de Samuel e o que levou ao aparente fim deles como um grupo de profetas, são perguntas que não podem ser respondidas. É possível que, de uma forma ou outra, eles tenham continuado até reaparecerem como “os discípulos dos profetas” na época de Elias e de Eliseu. Nesse ínterim, certos indivíduos conhecidos como profetas, ou videntes, empreenderam ministério público, em especial, na corte de Davi. Entre estes estavam Nata (2Sm 7.2; 12.25; 24.11; lRs 1.8-10,22-24,32-40,45), Gade (ISm 22.5; 2Sm 24.11) e Hemã (lC r 25.5). O último foi devotado a profetizar em conexão com a música, ao passo que Gade serviu principalmente como conselheiro de Davi (ISm 22.5), conselheiro por intermédio do qual Deus falou diretamente a Davi. Gade advertiu Davi de três opções que tinha disponíveis quando o Senhor estava para o punir pelo imprudente censo e instruiu o rei a construir um altar na eira de Araúna “em obediência à ordem […] dad[a] em nome do Senhor ” (2Sm 24.18,19).
O papel de Natã como íntimo confidente do rei era informá-lo da aliança por meio da qual a descendência real de Davi continuaria para sempre — uma predição volumosa e detalhada que se alonga até a escatologia (2Sm 7.5-16) — e também admoestá-lo por seu adultério e homicídio (2Sm 12.7-12). Esse ministério duplo dos profetas como prognosticadores e proclamadores continuou por toda a era das monarquias e além delas, até o encerramento do cânon do Antigo Testamento. Eles eram porta-vozes do Senhor atentos ao futuro e também à própria época deles. Nos dois casos, o verdadeiro profeta era um veículo da revelação divina, veículo esse que não declarava sua própria palavra, mas a de Deus. O repentino e misterioso aparecimento do profeta Elias introduziu toda uma nova fase do ministério profético. A primeira declaração feita por esse personagem enigmático e sobre ele foi confrontativa, e a missão dele, a partir desse ponto, foi essencialmente de confrontar as maldades da nação, desde o rei em seu trono ao mais humilde cidadão. Contudo, tudo foi claramente feito em nome do Senhor e como porta-voz dele (lRs 17.14; 19.9,15; 21.19,28; 2Rs 1.16).
O primeiro indício de uma ordem institucional de profetas contínua ocorre em relação ao reinado do rei Acabe de Israel (874-853). Jezabel, a perversa esposa do rei, iniciara a matança de muitos deles, massacre que fez com que Obadias, um dos comandantes de Acabe, salvasse os profetas que conseguiram escapar (lRs 18.3,4). Elias, o cabeça dos “discípulos dos profetas” como eram chamados agora, lamentou ser o único profeta do Senhor que restou (v. 22), conforme o Senhor mesmo deixou claro depois, foi um tanto exagerado da parte de Elias achar isso (19.18; cf. 20.13,22,28,36; 22.8). Nos últimos dias de Elias, a já existente companhia de profetas de Betei confirma o fato de que esse movimento ainda estava em atividade desde os tempos de Samuel, 150 anos antes, abandonara a letargia e fora reavivado (2Rs 2.3). Os discípulos dos profetas ministravam principalmente em dois locais distintos ou em torno deles — Betei e Jericó. Depois do desaparecimento de Elias nos céus, eles reuniram-se em torno de Eliseu, chamando-o de senhor e, até mesmo, de pai, como Eliseu chamara a Elias (2Rs 2.19; 2.12). Os dois eram tratamentos de respeito e transmitiam a idéia de que os dois grandes profetas eram vistos como os cabeças de suas respectivas comunidades. Todavia, conforme era o caso com o grupo de discípulos proféticos de Samuel, pouco se conhece do ministério desses discípulos dos profetas. Eles viviam em comunidade (2Rs 2.3,5,19; 6.1-6), mas não eram monásticos nem mesmo celibatários (4.1). Pelo menos, um incidente sugere que esses homens agiam em nome de seus mestres, desempenhando atribuições tão importantes quanto a unção de Jeú como futuro rei de Israel, transmitindo a ele a mensagem que o profeta envolvido disse ser a palavra de Deus transmitida por seu intermédio (2Rs 9.1-10).
A única referência aos discípulos (ou discípulo) dos profetas além dessa aparece em Amós 7.14, passagem em que Amós repudia toda conexão com o profetismo verbal: “Eu não sou profeta nem pertenço a nenhum grupo de profetas, apenas cuido do gado e faço colheita de figos silvestres”. No entanto, uma vez que Amós viveu meio século depois de Eliseu, ou por volta disso, essa declaração pode não ser de forma alguma uma alusão à escola de Eliseu, mas, antes, uma maneira de negar qualquer associação com o profetismo profissional. Desde que Amós, em geral, é visto como o primeiro dos profetas canônicos, ou seja, aqueles cujos escritos foram reconhecidos por seus contemporâneos como Escritura e foram incorporados na coletânea canônica, isso leva ao exame da próxima fase da tradição profética. A partir da época de Amós (por volta de 760 a.C.) até o último dos profetas, Malaquias (por volta de 460 a.C.) — período de apenas três séculos — os dezesseis profetas escritos falaram e escreveram a palavra de Deus com total consciência e testemunho explícito de que faziam isso. Centenas de vezes, eles apresentam seus oráculos com a fórmula: “Assim diz o Senhor ” , e outras semelhantes, não deixando dúvida para os que estavam dispostos a os ouvir de que eles, na verdade, receberam revelação do Senhor e a transmitiam nas verdadeiras palavras impressas neles.
Jeremias é apenas um exemplo da consciência que esses profetas tinham de que, na verdade, não transmitiam apenas alguma lembrança obscura de um encontro divino, mas a(s) autêntica(s) palavra(s) de Deus. O profeta, preso pelo perverso rei Jeoaquim, por causa de seu suposto conselho traiçoeiro para que o rei se rendesse aos babilônios, tirou vantagem de seu ócio forçado para escrever as palavras do que, no fim, chegou-nos como o livro que leva o nome dele. Contudo, a composição original foi confiscada pelos funcionários do rei que levaram o rolo para Jeoaquim. O rei, sentado ao lado do fogo em um frio dia de inverno, enraivecido pelo que leu, rasgou o rolo em pedaços e lançou-os ao fogo. Jeremias, sem se amedrontar pela destruição do manuscrito da palavra escrita de Deus, determinou-se a fazer todo o trabalho de novo, dessa vez, acrescentando outros escritos (Jr 36). Preste atenção na leitura dessa narrativa. O Senhor ordenou a Jeremias que escrevesse em um rolo “todas as palavras” que ele dissera desde o início do ministério de Jeremias até aquele momento (v. 2). Essa ordem pressupõe a capacidade de Jeremias de (1) reconhecer a palavra de Deus quando marcado por ela e (2) de distinguir entre o que era realmente a palavra de Deus e o que era apenas alguma convicção religiosa ou resposta emocional a um ato gracioso de Deus em relação a ele. Além disso, o texto insiste que as “palavras” (no plural, não palavra nem ideia abstrata) estavam em pauta. O registro declara que “Jeremias chamou Baruque, filho de Nerias, para que escrevesse no rolo, conforme Jeremias ditava, todas as palavras que o Senhor lhe havia falado” (v. 4).
Depois do traumático e aparentemente decisivo ato de destruição do rolo, Jeremias, incitado pelo Senhor, pegou outro rolo em obediência à ordem recebida: “Pegue outro rolo e escreva nele todas as palavras que estavam no primeiro, que Jeoaquim, rei de Judá, queimou” (v. 28). Jeremias, entregando o rolo a Baruque, começou do início e ditava para que Baruque escrevesse “nele todas as palavras que estavam no primeiro, que Jeoaquim, rei de Judá, queimou” (v. 32). A intenção da narrativa está fora de discussão: a palavra de Deus para os profetas era verbal, portanto, o que eles disseram e escreveram também era verbal. Nunca é revelado os meios pelos quais a verbalização foi efetuada, nem é necessário conhecê-los. O ponto é que a palavra profética, a mais alta forma de revelação divina, foi reconhecida na época como a palavra de Deus, percepção mantida praticamente em consenso unânime pela tradição judaica e cristã até a invasão da crítica moderna.
—– Retirado de Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento.
Se quiser ler mais sobre isso, à guisa de pesquisa, veja este post aqui.
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