Os modelos políticos variam, mas desde os tempos antigos, todos eles têm algo gritantemente em comum: estar no controle.
De início, farei uma observação meramente técnica, sem palpitar sobre o que há no coração das pessoas. Vamos lidar apenas com os fatos evidentes: independentemente da posição política, se mais à direita ou mais à esquerda, a forma dos candidatos tentarem mostrar serviço ao eleitorado é vendendo a ideia de que, quando subirem ao controle, de fato controlarão: farão leis conforme o gosto de uma parcela da população, que serão impostas contra o restante.
Agora, veja como isso soa estranho à fé cristã. Primeiro, porque ser político pressupõe, pela própria função, que algumas pessoas têm tanta certeza que sabem o que é melhor para a vida das outras pessoas que, como se isso já não fosse suficientemente prepotente, acreditam que têm o “direito” de literalmente impor seus gostos à força na sociedade por meio de leis que inventam.
Ás vezes, é preciso dizer até as coisas mais óbvias: a Bíblia jamais legitima essa ideia de maneira alguma. Pelo contrário, essa ideia está em total oposição à fé e testemunho cristãos.
Mesmo assim, os cristãos estão cada vez mais gostando de como o jogo político e a força estatal funcionam.
Se, de um lado, temos militantes secularistas ansiosos por ver a dominação estatal, em menor ou maior grau, do outro lado, temos uma imensidão cristã desejosa de que a Igreja governe a sociedade e dite as regras – ao menos indiretamente.
Quando a Igreja assume o controle, o que temos é uma versão ocidental da sharia islâmica, com religiosos impondo sua lei, sua moral e seus costumes ao povo em geral.
Mas não, um governo que controla a moral não é um governo cristão, nem mesmo um governo genuíno.
Em partes, isso acontece porque muitos cristãos têm dificuldade de ler o Antigo Testamento (AT) dentro do seu contexto.
Israel e a Igreja
Quando olhamos para o AT, vemos um ideal de estado judaico. Deus havia escolhido uma etnia e uma nação, deu regras civis e disse como a política interna funcionaria, abrangendo as mais diversas relações sociais. Nesse sentido, o AT é um livro é muito político; é quase uma legislação em muitos momentos. Por isso, muitos olham para aqueles textos e pensam que eles representam o modo como nós devemos nos relacionar com o nosso estado.
O problema é que tudo isso perde completamente o sentido a partir de um ponto muito simples: diferente dos judeus, os cristãos não são uma etnia e um país. Os cristãos, por isso, também não receberam de Deus uma legislação, uma lista de critérios legais para que nós mesmos arbitrássemos questões sociais.
No Novo Testamento (NT), Deus não entrega uma constituição ao seu povo, pois esse povo não tem e jamais voltaria a ter uma nação própria.
A estrutura social sobre a qual Israel vivia ficou restrita àquele povo e para aqueles dias. Nem mesmo os judeus de hoje, no Israel moderno, desenvolveram um estado judaico aos moldes da Antiga Aliança. Mas porque havia essa estrutura no AT, uma teologia pouco esclarecida sobre as continuidades e descontinuidades do AT para o NT fazem com que alguns cristãos misturem as coisas.
Coloque isso em sua cabeça: o cristianismo não possui um modelo de estado. Não existe na Bíblia a pretensão de um projeto de sociedade cristã. O cristianismo, de maneira nenhuma, se propõe a fundar um estado, mas a preparar pessoas a um novo reino que o Senhor um dia trará para cá.
É sobre isso que Paulo ensina na carta aos Filipenses. E eu sei que isso é muito duro de ouvir para alguns cristãos.
Hoje, por causa do apelo apocalíptico da propaganda política, os cristãos rapidamente diriam que “nós precisamos agir e ocupar a política, precisamos fazer alguma coisa para impedir que o mal avance e faça a Igreja sofrer!”. Paulo ficaria chocado se ouvisse isso.
Veja o que ele diz exatamente sobre esse assunto:
“Irmãos, sejam meus imitadores e aprendam com aqueles que seguem nosso exemplo. Pois, como lhes disse muitas vezes, e o digo novamente com lágrimas nos olhos, há muitos cuja conduta mostra que são, na verdade, inimigos da cruz de Cristo. Estão rumando para a destruição. O deus deles é seu próprio apetite. Vangloriam-se de coisas vergonhosas e pensam apenas na vida terrena.
Nossa cidadania, no entanto, vem do céu, e de lá aguardamos ansiosamente a volta do Salvador, o Senhor Jesus Cristo.
Ele tomará nosso frágil corpo mortal e o transformará num corpo glorioso como o dele, usando o mesmo poder com o qual submeterá todas as coisas a seu domínio” (Fp 3:17-21).
E ainda:
“O que nos separará do amor de Cristo? Serão aflições ou calamidades, perseguições ou fome, miséria, perigo ou ameaças de morte? Como dizem as Escrituras: ‘Por causa de ti, enfrentamos a morte todos os dias; somos como ovelhas levadas para o matadouro’. Mas, apesar de tudo isso, somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou” (Rm 8:35-37).
O sofrimento não é acidente na vida cristã. Fomos avisados!
O AT realmente dizia “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor!”. Mas isso foi escrito quando? Dentro de um contexto em que o povo de Deus tinha uma nação, oras.
Qual é a nossa nação, a nação cristã, hoje? Não existe, pois a nossa cidadania é celeste; o nosso reino é divino, não humano.
A Imposição da Ética
Se você assumiu uma posição política no coração, eu sei que será difícil ser comparado aqui com o outro lado. Mas não será à toa. Preste bem atenção: ambos os lados, mais à direita ou mais à esquerda, são exatamente iguais no método.
Um grupo pode ter pautas diferentes com relação aos demais, mas o que todos eles têm em comum é o desejo de impor à sociedade o que acreditam. Tanto crentes de direita quanto de esquerda decidiram que a sociedade deve obedecer suas diretrizes e, assim, lutam com fervor pelo mesmo objetivo: usar a força estatal para isso.
Esses cristãos precisam, com urgência, ler o livro “A imaginação totalitária”, de Francisco Razzo.
Se você gosta de pensar que sua crença é inviolável, deveria aplicar isso também às pessoas com crenças diferentes.
A fé bíblica, tanto no AT quanto no NT, jamais ensina a imposição de uma ética ou de uma cultura aos outros.
No AT, o povo de Deus era um país com leis próprias dadas por Ele mesmo. As leis misturavam questões sociais e morais, e não havia distinção entre a esfera civil e a esfera religiosa.
Ou seja, para os israelitas, a vida pública era também a vida da fé. No NT, espera-se que a vida pública do povo de Deus continue sendo vista em sua vida pública. Porém, houve uma mudança brusca: o povo de Deus não tem mais uma pátria, nem leis próprias.
Por isso, espera-se que eles testemunhem sua fé mesmo debaixo do domínio dos governantes de suas nações.
No AT, a lei não servia apenas para apontar o pecado, mas também como uma constituição para Israel. Por isso, apesar das leis no AT serem de obrigação coletiva, punidas até com pena de morte em vários casos, no NT entendemos que a moral cristã deve ser anunciada, mas nunca imposta à força contra a sociedade. A moral cristã, imposta por meio da política e agressão estatal nunca salvará, nem mudará o caráter de ninguém. A nossa missão não é impor, mas testemunhar (compare Dt 19:18-21 e Mt 5:38-39).
Apesar de uma mensagem com implicações políticas, Jesus jamais dava orientações de atuação política.
Ao contrário disso, todas as vezes que uma mensagem de Jesus entrava no campo político, era para se opor à política e aos reinos deste mundo. Aliás, o próprio reino de Deus, tema principal das pregações de Jesus, está sempre em oposição ao reino humano.
No anúncio da grande comissão, Jesus se apresenta justamente com “toda a autoridade”, e ainda assim, não há qualquer tipo de ordem de imposição da ética cristã aos de fora. Na verdade, Jesus ensina-nos a fazer discípulos, e não a coagir; Ele nos ordena a ensinar, não a obrigar:
“Jesus se aproximou deles e disse: “Toda a autoridade no céu e na terra me foi dada. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações […] Ensinem esses novos discípulos a obedecerem a todas as ordens que eu lhes dei” (Mt 28:18-20).
Na oração do Pai Nosso, Jesus nos ensina a orar para que sua vontade seja feita e não a impor sua vontade.
Não há dúvidas: a imposição da ética é anticristã.
Leia muito, mas muito mais sobre isso no livro A Política e a Fé Cristã, no link abaixo: