Anselmo foi o “criador” da escolástica, a tradição teológica que se desenvolveu e dominou a teologia cristã na Idade Média.
A escolástica foi mais um método de aprendizagem do que uma corrente teológica, que usava a lógica e a dialética, os dois pontos fortes de Anselmo, como se vê em seus tratados, quase todos eles compilados neste livro.
No primeiro livro, o Monologium (solilóquio: ato de conversar consigo mesmo / monólogo interior), Anselmo faz uma meditação sobre o fundamento racional da fé. Abaixo, cito um trecho do editor do livro para localizar o leitor:
“Normandia, norte da França, ano 1076. Os monges da abadia de Bec não estavam inteiramente satisfeitos com as Escrituras Sagradas. Eram homens de piedosa fé cristã e acreditavam nas palavras divinas de sua religião. Contudo, sentiam necessidade de um alimento intelectual superior, que lhes desse as mesmas certezas da revelação bíblica, mas de um ponto de vista exclusivamente racional. Em longas conversas com o prior da abadia, ficaram convencidos de que ele poderia auxiliá-los. Insistiram para que o prior redigisse, sob forma de meditação, algumas de suas idéias sobre a essência divina e sobre outras questões. Não deveria recorrer, em absoluto, à autoridade das Escrituras Sagradas e tudo aquilo que fosse exposto deveria ser feito mediante o encadeamento lógico da razão. Os argumentos deveriam ser simples e o estilo acessível, a fim de que a verdade se tornasse evidente pela própria clareza. Estabeleceram ainda que ele não poderia deixar de responder a eventuais objeções que se apresentassem ao longo do trabalho. O prior mediu suas forças e achou-as frágeis para levar a cabo o empreendimento, mas tal era a insistência dos monges, que acabou vencido e começou a se desincumbir da tarefa. Depois de algum tempo, terminou uma pequena obra, intitulada Monológio, na qual procurou provar a existência de Deus, tal como os monges lhe tinham pedido, isto é, de maneira puramente racional, sem auxílio das Sagradas Escrituras”.
Pois bem, o livro de Anselmo tem dois argumentos:
• ARGUMENTO 1 – Os argumentos desenvolvidos eram quatro, mas podem ser reduzidos a dois, para mais fácil compreensão. O primeiro, de índole platônica, parte da constatação de que o homem encontra no mundo grande quantidade de coisas, que podem ser classificadas como mais ou menos boas. As coisas possuem, assim, uma bondade relativa que, necessariamente, deve ter como ponto de comparação um bem absoluto. Como as coisas contêm quantidades variáveis de bem, este não pode ser identificado com essas bondades relativas. O bem absoluto fundamenta os bens relativos, e se ele não existisse não teria sentido falar das coisas como sendo mais ou menos boas.
• ARGUMENTO 2 – O segundo argumento diz respeito à idéia de causa, principal recurso para se explicar a razão da existência das coisas. Todas as coisas são isto ou aquilo por causa de outras coisas; nenhum ser pode ser por si mesmo, ou a partir de nada. Em outras palavras, as coisas são relativas e impõe-se conceber como existente, necessariamente, um ser absoluto que é causa de si mesmo e fundamento de todos os demais seres.
Ainda nesse primeiro livro, ele trata da distinção entre as pessoas da Trindade, fazendo uso da lógica, discute o motivo de serem chamados “o Pai” e “o Filho” (e não “mãe” e “filha”), prova a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas e demonstra o absurdo do argumento de que algo poderia vir a existir “do nada”, quando desse “nada” se sugere a autoexistência das coisas em contraposição à criação da parte de Deus.
O segundo livro de Anselmo é o Proslogium (ideia de discurso interior) meditação/investigação realizada por aquele que deseja contemplar Deus e entender aquilo que inicialmente crê.
A diferença entre os dois materiais é que enquanto no primeiro livro ele tenta provar que a fé e a razão não são opostas e que existe um fundamento racional pra crer, nesse segundo ele tenta demonstrar qual é esse fundamento mais especificamente.
E é aqui que Anselmo lança seu famoso “argumento ontológico”, como foi denominado posteriormente pelo filósofo Kant.
RESUMO DO LIVRO: Toda a demonstração de Anselmo repousa sobre três pressupostos: uma noção de Deus fornecida pela fé; a convicção de que existir no pensamento já é verdadeiramente existir; a exigência lógica de que a existência da noção de Deus no pensamento determine que se afirme sua existência na realidade.
Obviamente, o argumento não funciona pra qualquer coisa que alguém possa pensar ou inventar na própria mente. O que Anselmo faz é demonstrar que aquelas categorias absolutas que eu citei antes são, em primeiro lugar, NECESSÁRIAS e, justamente por isso, existentes na realidade.
Uma coisa que talvez não tenha ficado clara: no primeiro livro, Anselmo elaborou um argumento sobre a existência de Deus que é a posteriori. Ou seja, é um raciocínio indutivo. Ele argumenta a partir da existência de coisas que a gente pode constatar na realidade pra então chegar até a existência de Deus. Mas o que ele queria mesmo era um argumento A PRIORI, que é o que ele faz no segundo livro. Ou seja, ele parte do zero, de puro raciocínio lógico, e, por dedução, chega à existência de Deus. Não é uma análise a posteriori, com dados que ele derivou a partir da experiência. É a priori, é uma conclusão que você pode tirar com base no sentido lógico dos conceitos.
O terceiro livro chama-se “O Gramático”, onde Anselmo discute com um de seus alunos sobre a diferença entre o ser e o que podemos chamar de um “acidente” do ser – uma característica.
Anselmo trata também, com lógica pura, de refutar o que se entende por “livre arbítrio” (moral e volitivo, não sobre a potencialidade de fazer escolhas simples); sobre a razão de tanto a condenação quanto a salvação serem justas da parte de Deus; elabora com precisão a doutrina do Pecado Original; nega com veemência a doutrina católica que se consolidou posteriormente como “Imaculada Conceição” (sim, nega, provando logicamente).
Por fim, nada melhor do que encerrar uma resenha sobre Anselmo do que com um dos seus parágrafos mais belos de todos:
“Que que a minha alegria venha a ser completa. Deus da verdade, suplico-te, possa eu fruir dessa alegria completa. Que a minha mente, de agora em diante, só pense nisso; que a minha boca só fale nisso; que o meu coração só ame isso; que a minha alma só anele por isso; que a minha carne só tenha sede disso; que o meu ser inteiro só deseje isso até o momento em que perceba em mim a alegria do meu Senhor, que é Uno e Trino, bendito por todos os séculos. Assim seja”.