Eclesiastes não contribui senão indiretamente para o desenvolvimento do propósito histórico de Deus no Antigo Testamento, pois não contém história em si. O livro serve, todavia, para retratar o fato do decreto da permissão do mal e a tentativa freqüente do homem, como indivíduo, em resolver e explicar tal problema. A teodicéia de Eclesiastes consiste em demonstrar a impossibilidade humana de resolver o problema e a necessidade de viver na fé em um universo onde o Criador determinou que o mal exista até o dia em que Ele vai julgar os justos e os ímpios (3.17).
A DOUTRINA DE DEUS
Deus é caracterizado em Seu papel de Criador. O nome exclusivo de Deus em Eclesiastes é elohîm , usado quarenta vezes. Deus é transcendente (5.2), Criador (11.5; 12.1), doador da vida (8.15; 9.9) e organizador da vida (3.1-8). Ele controla os ciclos da existência terrena (1.5-7) e dela cuida como um Pastor (12.11).
Deus é apresentado como pessoal e justo. Qohelet atribui a Deus atividades de intelecto (percepção e discernimento [5.20]), de emoção (agrado [2.26; 7.26] e ira [5.6]), e de vontade (benevolência [2.24-26; 3.13; 5.18-19; 6.2] e generosidade [2.26; 5.19; 6.2]). Ele possui um caráter moral santo (5.1,2) e exercerá justiça (3.17; 8.13).
Deus é apresentado como inescrutável. Qohelet demonstra com seu livro que mesmo a sabedoria do povo a quem Yahweh se revelou não consegue abranger todo o propósito divino e as maneiras pelas quais o Criador lida com as criaturas (3.11; 8.17; 9.1; 11.6). Tal inescrutabilidade, todavia, não é egoísta ou malévola, nem mesmo isolacionista; tem, antes, como objetivo, que o homem tema a Deus (3.14).
A DOUTRINA DO HOMEM
O homem é apresentado como um ser finito e que deriva sua existência de Deus O homem é criatura (11.5; 12.1), preso à terra (5.2) e sujeito à morte (3.19,20; 6.6). O homem é apresentado como um ser complexo Qohelet usa duas palavras hebraicas para ―homem‖, םָ אד) ָʾāḏām, usada 49 vezes no livro e ligada à origem ― terrena do homem), 26 e ישִׁ א) ʾîš, usada dez vezes no livro e ligada à idéia do homem como indivíduo ).27 Além de sua carne ou corpo (heb. רָשָב , ḇāśār) , por meio da qual o homem experimenta as dificuldades do mundo paradoxal em que vive (11.10; 12.10), ele possui uma parte imaterial que funciona em três níveis: alma (שֶפֶנ ,nep eš,), o centro dos desejos humanos de alegria e realização (6.2-3; 7.9) e sede da investigação e contemplação espiritual (7.28); espírito (ַֹרוח ,rûaḥ), que pode ser uma referência ao temperamento do indivíduo (7.8, 9) e ao princípio animador da vida (3.19, 21; 12.7);28 e coração (בֵל ,lēḇ) a designação mais freqüente do ser interior do homem e que inclui seu intelecto (1.13), suas emoções (7.3,4) e sua vontade (7.7; 8.11).
Qohelet cria na universalidade do pecado (7.20) e na depravação total do homem (9.3). Tais fatores redundam em várias formas de pecado, como a opressão (4.1-3; 5.8), a inveja (4.4), a ganância (5.10), o orgulho (7.8), a ira (10.4) e a imoralidade (7.26). A idéia do obscurecimento espiritual do homem está presente em Eclesiastes (3.11; 11.5). Uma das conseqüências do pecado, na qual Qohelet concorda plenamente com a sabedoria tradicional, é a morte prematura (7.17; 8.13). O pecado do homem, combinado com a imprevisibilidade da vida torna o trabalho humano pouco ou nada recompensador (1.3; 3.9), penoso (2.17) e deturpado pela inveja (4.4). Quando, porém, o trabalho, a despeito de tais problemas, é visto como parte de um ―pacote‖ vindo de Deus, ele pode ser desfrutado (3.22; 8.15; 9.9).
A morte, em Eclesiastes, é um fato do qual não se pode escapar. Todos morrerão (2.14-16; 3.18-20) e o homem não pode alterar o que já está determinado, o dia de sua morte (3.2; 8.8). A morte significa a entrega do espírito a Deus (3.21; 12.7). Diante de uma vida curta que não pode controlar, o homem deve, acima de tudo, temer a Deus (3.14; 5.7; 7.18; 8.12,13; 12.13). Deve ainda lembrar-se de Deus (12.1, 6), adorar sinceramente a Deus (5.1,2), ser sábio (2.13; 4.13-16; 8.5), ser diligente (9.10; 11.2-6), e desfrutar a vida (2.24-26; 3.12,13, 22; 5.18-20; 8.15; 9.7-9; 11.8,9).
QUESTÕES TEOLÓGICAS E HERMENÊUTICAS
O livro de Eclesiastes compartilha com o livro de Jó uma posição única no cânon, a categoria de sabedoria especulativa, pois ambos estão ocupados com a busca de uma proposição definitiva com respeito à natureza da vida. Em tal busca o autor oferece uma apologética para um estilo de vida teocêntrico em um mundo que perdeu sua racionalidade devido às tentativas humanas de obter sentido da vida por sua engenhosidade e realização. O propósito aparente de Eclesiastes, estimular o temor do Senhor como a chave para uma vida significativa em um mundo que é, em tudo o mais, desprovido de significado, é obtido pela demonstração da incapacidade humana de obter proveito da vida, isto é, encontrar realização como indivíduo (1.12– 6.9), e pela demonstração da incapacidade humana de encontrar ou perceber o sentido da vida (6.10–11.6). A perspectiva total da obra depende de como o intérprete entenda certas expressões e certos temas do livro. A frase utilizada com freqüência: ―debaixo do sol‖, com 33 ocorrências no livro, é a primeira delas. Muitos intérpretes conservadores a tomam como uma indicação da maneira de Qohelet analisar os dados de que dispõe para entender a vida,29 assim chegando à conclusão de que os argumentos principais do livro não deveriam ser considerados como ―verdade‖, já que oferecem apenas uma ―perspectiva humana da vida‖. Scofield acaba por conferir ao livro uma espécie de subinspiração, que lhe permite transmitir em linguagem inspirada as impressões errôneas de um ponto de vista totalmente humanista sobre a vida. Todavia, os íntimos paralelos entre Eclesiastes e o livro de Gênesis apontam para uma perspectiva criacionista e teocêntrica, que orientou Qohelet em sua análise.30 Tal perspectiva é identificável nas passagens citadas no quadro a seguir. Esse uso generoso de Gênesis sugere fortemente que a teologia de Qohelet era bastante ―mosaica‖ (e, portanto, parcialmente pactual), e que seu uso de ―debaixo do sol‖ indica a esfera de suas observações, não sua abordagem interpretativa.
Outra expressão-chave para a interpretação de Eclesiastes é a palavra hebraica לֶבֶה ( eḇel), que a maioria dos comentaristas liga ao suposto pessimismo do livro. É lamentável que a maioria dos leitores tenha permitido que uma mentalidade negativa domine seu entendimento de um livro escrito para ensinar conhecimento (12.9). Em geral, o significado de לֶבֶה presumido pelos comentaristas determina sua opinião com respeito à perspectiva do livro e de seu autor. Isso pode variar do extremo de um teísmo malévolo e fatalista31 a um deísmo moderado,32 passando por total agnosticismo33 e uma ―filosofia de resignação‖.34 Embora לֶבֶה possa ter várias nuanças diferentes no livro, prefiro o significado enigma, que contém algumas das implicações negativas de traduções como ―vaidade‖, ―futilidade‖ e ―absurdo‖, mas permite o desenvolvimento de um contraponto positivo de um modo que as outras traduções citadas não permitem. Este contraponto se encontra no uso do tema de desfrutar a vida (2.24; 3.12; 3.22; 5.17; 8.15) e das afirmações que contêm a expressão ―não há nada de melhor (2.24; 3.12; 3.22; 8.15), que perdem sua conotação puramente sensual e materialista que conservadores como Leupold e Scofield lhes atribuem por sua compreensão errada da frase ―debaixo do sol‖. Isso significa que o livro não tem uma visão pessimista da vida, e que Qohelet não está em conflito aberto com a sabedoria tradicional, mas que oferece um equilíbrio aos princípios gerais de fé esboçados em Provérbios e nos salmos didáticos. Outra área em que esse contraponto teológico é necessário é a sabedoria. Ela parece ter falhado a Qohelet em relação a 7.22-29. De acordo com 2.12-16, a sabedoria é impotente para que tanto sábios quanto insensatos escapem ao destino comum que os espera; por isso, tal destino é qualificado como um enigma (לֶבֶה).
Por isso, alguns sugerem que הָמְֹּכָח) ḥoḵm ) normalmente traduzida como ―sabedoria‖ seja entendida como ―sagacidade‖, sem qualquer conotação de piedade, como lhe é dada em Jó e Provérbios. Isto, todavia, é negado por 2.3, em que Qohelet contrasta sabedoria e loucura. Qohelet não descarta a sabedoria como algo inútil. Ele simplesmente aponta algumas ―brechas na muralha‖, que Provérbios já apontava (cf. Pv 16.9; 17.27,28; 21.30). Poderíamos dizer que Qohelet consegue sa-cudir a confiança de seus leitores na sabedoria o suficiente, para que eles vejam que Deus, não a sabedoria em si, deveria ser o objeto de sua fé. Neal Williams colocou a situação em perspectiva apropriada ao afirmar: ―Provérbios afirma pela fé (não pela visão, como se presume comumente) que existe uma ordem justa no mundo, mas Qohelet responde que tal ordem justa não pode ser discernida pela visão… Eclesiastes equilibra o otimismo da fé com o realismo da observação‖.35 Uma última vítima hermenêutica na interpretação de Eclesiastes é seu conceito de morte. Em vez de ver um conceito humanista da vida e da morte (cf. 9.5), como fazem muitos comentaristas que não percebem a espiritualidade do livro, é mais correto perceber o princípio de contraponto no elemento do juízo. Esse tema surge em 3.17; 8.12,13; 11.9; 12.7; e 12.14. A vida, com todos seus paradoxos e enigmas, é mais desejável que a morte, porque para além da morte, além da inatividade da morte (9.10), não nos espera o aniquilamento, mas o julgamento divino. O tenaz abraço de Qohelet a uma vida de cachorro, em vez de a uma morte de leão, sua angústia quanto à aparente falta de retribuição nesta vida e a certeza de um julgamento por Deus, todos esses elementos contribuem (dialeticamente ou em contraponto) para indicar que Qohelet tinha uma esperança definida, embora limitada, de existência postmortem.
ARGUMENTO BÁSICO
Salomão (Qohelet), ao encerrar sua obra, afirma que ―ensinou conhecimento ao povo‖ (12.9). Seu propósito parece ter sido didático e estar relacionado a suas exortações finais. Sua análise dos afazeres do homem levou-o a concluir que o esforço humano, por mais nobre que seja, não pode dar ao indivíduo realização na vida, que é inapelavelmente deformada pelas muitas ―astúcias‖ do homem (7.29). Portanto, seu propósito parece ter sido: Estimular o temor do Senhor como a chave para uma vida significativa em um mundo que é, em tudo o mais, desprovido de significado.
Demonstrando que os esforços humanos são desprovidos de significado em um mundo que não traz realização pessoal ao homem (1.2-11). Esta primeira divisão do livro introduz a observação inicial sobre a natureza da vida (1.2). À luz da natureza enigmática da vida, os esforços do homem não lhe trazem realização (1.3). Essa observação inicial é confirmada pela aparente falta de contribuição do homem a um mundo que está irremediavelmente preso a ciclos enfadonhos (1.4-11). Além da natureza repetitiva da vida, o homem está enredado em um mundo em que o passado logo perde sua significância e tudo que se realiza é rapidamente esquecido (1.11).
Demonstrando, por meio de sua busca empírica por significado, que o homem não pode derivar proveito da vida, a não ser que a desfrute sob o temor de Deus (1.12 – 6.9). Qohelet, nos versículos 1.12-18, apresenta um resumo de sua investigação e indica seu princípio direcionador. Seu escopo foi todo o campo do esforço (atividade) humano (1.13) e seu princípio direcionador foi a sabedoria (הָמְּ כָח ,ḥoḵm , 1.13). Ele afirma que a vida se apresenta como uma série de paradoxos desprovidos de sentido (1.14,15) que mesmo a sabedoria humana sem paralelo não conseguiu resolver. Em última análise, sua capacidade de discernir e entender idéias e situações serviu apenas para torná-lo mais agudamente cônscio dos problemas insolúveis da vida. A seguir, a busca por significado levou Qohelet a buscar o prazer como a avenida pela qual a vida pudesse ser vivida em toda sua intensidade. Isso, todavia, levou à frustração (2.1-11). Ele declara a futilidade de suas tentativas (2.1,2) e lista as áreas de sua busca de modo a não deixar dúvidas na mente de seus leitores. Desfrutar os prazeres do vinho (2.3), tornar-se um renomado construtor (2.4-6), acumular riquezas e propriedades (2.7, 8a), desfrutar os prazeres sensoriais da arte e do sexo (2.8b), tudo isso se mostrou inútil (cf. וןֹרְּ תִׁיֹיןֵא ,ʾên yiṯrôn, em 2.11) como fundamento para trazer significado à vida. Qohelet, uma vez que sua tentativa epicuriana terminara em fracasso, tentou uma abordagem mais estóica, buscando a sabedoria como o fundamento básico para uma vida significativa (2.12-17). Acabou por descobrir que a sabedoria, isto é, um estilo de vida disciplinado, era superior ao estilo de vida desenfreado conhecido como loucura e insensatez (לותְּ כִׁ סְּו ותֹלֵולֹה ,ôlēlôṯ we siḵlûṯ, 2.12 ),36 mas no final a morte acaba por nivelar o sábio e o insensato (2.14,15), e isso configurou um enigma aos olhos de Qohelet (2.15). O esquecimento definitivo é o fim tanto do sábio quanto do insensato e isso desqualifica a sabedoria como o caminho pelo qual o indivíduo ―alcança o topo‖ na vida (2.17). A terceira avenida pela qual Qohelet buscou encontrar realização foi o trabalho (2.18- 23). A vida de um ergoólatra, no entanto, negou-lhe satisfação duradoura, uma vez que o homem não tem garantia de que será capaz de desfrutar o resultado de seus cansativos labores (2.18), tendo, às vezes, de deixá-lo para descendentes menos qualificados (2.19), o que é desestimulante para alguém cuja mente e, até mesmo, cujo sono estão absorvidos em seu trabalho (2.20, 23). Qohelet, depois de percorrer esse caminho, chega a sua primeira conclusão (2.24-26). Embora o homem não obtenha vantagem real nesta vida e não seja capaz, depois da morte, de desfrutar o resultado de seu esforço, o gosto obtido com o trabalho e o desfrute das necessidades básicas para a sobrevivência humana são uma dádiva de Deus (יםִׁ להֶֹאָהֹדַטִׁ מ ,miyy ḏ āʾĕlō ’m, ―vem da mão de Deus‖, 2.24), que tem um cuidado especial por aqueles que buscam o bem (2.26). No entanto, mesmo esta atenuante, não elimina a natureza paradoxal da vida (ַֹרוהֹעותְּ רְּוֹלֶבֶח ,ḥeḇel we r e ʿûṯ rûaḥ, 2.26b). A tentativa de Qohelet de provar a incapacidade humana de extrair proveito da vida leva-o, portanto, a considerar a maneira soberana pela qual Deus estruturou o tempo (3.1-8). Por isso, além do esforço humano ser frustrado e frustrante, a ânsia por significado eterno (ou, pelo menos, duradouro) nesta vida que (3.11b – ֹןַ תָנֹםָל ֹעָת־הֶ א םָבִׁ לְּ ב ,ʾeṯ āʿōlām nāṯ n be libām, ‖pôs na mente do homem a idéia da [o anseio pela] eternidade‖) permanece insatisfeita, pois o homem não pode compreender o plano todo abrangente de Deus.
A despeito dessa aparente desvantagem, a vida ainda é uma dádiva divina que o homem pode desfrutar e compartilhar (3.12,13). Esta conclusão secundária parece indicar que o mundo de Qohelet se mantinha equilibrado pela tensão e que ele manteve seu juízo em suspenso no que diz respeito à questão do significado da vida. Sua tese básica de que um proveito definitivo não pode ser alcançado nesta vida é enfatizada em 3.14-21, em que a imutabilidade do plano de Deus é contrastada com a finitude do homem em um mundo onde a injustiça prevalece. Falando de maneira empírica, o homem tem pouca vantagem sobre os animais, de modo que o que lhe toca de melhor na vida é desfrutar tudo que consegue realizar (3.22). Qohelet, para sustentar sua tese, extrai apoio de diversas áreas da vida (4.1—5.17). A opressão torna a vida infeliz tanto para o opressor quanto para o oprimido (4.1-3), a ponto da não-vida parecer melhor que a vida. O trabalho, que poderia prover certa medida de realização, se sua dificuldade e benefícios forem repartidos com outros, também é desperdiçado por aqueles que avaramente acumulam riquezas para um futuro incerto que não podem compartilhar com mais ninguém (4.4-12). Mesmo aqueles que detêm o poder e que aparentemente não são afetados pelos paradoxos da vida serão eventualmente confrontados com a natureza volúvel da popularidade, porque aquilo que uma geração exalta a geração seguinte execra (4.13-16). A natureza não-racional da vida também aparece em 5.1-7, em que uma religião insincera ou insensata – que não leva em conta a transcendência e severidade de Deus – pode pôr a perder o trabalho de toda uma vida. Assim, o que realmente é importante na vida não é um envolvimento excessivo com a religião, mas o verdadeiro temor a Deus. O árduo trabalho da vida e o produto dos campos tantas vezes acabam no bolso de oficiais gananciosos e autoridades superiores que isso não deveria sequer causar surpresa (por inferência, Qohelet está afirmando que a produtividade da terra e seus lucros também não constituem garantia de uma vida gratificante [5.8,9]). Ambição e tragédias são outros dois fatores que Qohelet acrescenta a sua lista de razões pelas quais o trabalho não garante realização na vida (5.10-17). Tudo isso produz seu refrão e sua conclusão: a vida – com suas incoerências – deve ser desfrutada como uma dádiva divina, não como um enigma a ser entendido e resolvido (5.18-20). Como confirmação final de sua tese de que a vida não oferece proveito além de seu próprio desfrute, Qohelet levanta a questão da prosperidade desperdiçada, de riquezas e fama que não podem ser desfrutadas por causa de alguma tragédia ou de excessiva ganância. A morte nivela ricos e pobres, sábios e insensatos, de modo que o indivíduo fique satisfeito com o que tem nesta vida enigmática (6.1-9).
Demonstrando que o homem não pode encontrar ou conhecer o significado da vida a não ser que a desfrute sob o temor de Deus (6.10—11.6). Esta divisão do livro é caracterizada pela ocorrência de frases que indicam a incapacidade humana de conhecer ou entender (ַֹעֵ יד (יִׁ מ ,mî yōḏē a ʿ, ―quem sabe‖ [6.12]; yōḏē ʾên, אֵיןֹי ֹדֵ עַֹ a ʿ, ―não o sabe o homem‖ [9.1] e variantes em 9.12, 10.14, 11.2, e 11.6). Essa divisão também é mais prática, com mais conselhos e imperativos. Por isso, muitos comentaristas a consideram uma compilação desconexa de máximas sapienciais. No entanto, Qohelet, em toda a passagem, sugere que a sabedoria não é suficiente para que o homem entenda a vida. Em 6.10-12, o homem é apresentado como incapaz de discernir tanto o futuro, que Deus determinou, quanto o presente que passa por ele sem ser aproveitado. Assim, em 7.1 – 8.17, a sabedoria, apesar de possuir méritos relativos, é incapaz de ajudar o homem a sondar os propósitos de Deus para o mundo e para o próprio homem. A sabedoria pode ajudar o homem e protegê-lo em tempos de angústia, mas não é capaz de ajudá-lo a discernir o propósito da prosperidade ou da adversidade (7.1-14). Além do mais, a sabedoria não oferece proteção adequada contra reviravoltas do destino e atos irresponsáveis causados pela extensão e profundidade do pecado. A insensatez (―a mulher cujo coração são laços e redes, e cujas mãos são grilhões‖, 7.26) traz a humanidade (pelo menos, a maior parte dela) presa em suas garras e assim o homem desperdiça o dom divino da justiça e da retidão (7.15-29). Essa divisão termina com a indicação de que a sabedoria não tem explicação adequada para o enigma da retribuição divina. A sabedoria pode levar o indivíduo à obediência civil (conformidade social), mas isso não garante que ele esteja a salvo do uso errado que outros façam da autoridade (8.1-9). Mesmo a sabedoria não pode explicar adequadamente a natureza aparentemente aleatória da retribuição divina (8.10-17). O versículo 17 é a mais clara admissão encontrada nas Escrituras de que a sabedoria per se fracassa como instrumento de encontrar propósito na vida. A terceira seção dessa divisão retrata a incapacidade da sabedoria em revelar ao homem o que a vida lhe preparou (9.1—11.6). O indivíduo não deve tentar resolver o enigma da vida à luz da certeza da morte e da incerteza da vida (9.1-10). Além do mais, a sabedoria não pode oferecer ao homem um vislumbre sequer de sua recompensa nesta vida (9.11—10.11), uma vez que a vida é consideravelmente aleatória (9.11-18), e que a insensatez pode desfazer o que a sabedoria realizou (10.1-11). Por fim, apesar de suas deficiências, a sabedoria nos acautela a respeito de palavras impensadas contra os que estão em autoridade justamente devido à natureza aleatória da vida; a crítica particular pode resultar em confrontação pública com conseqüências funestas (10.12-20). A despeito de nossa ignorância quanto ao futuro, a vida deve ser encarada com entusiasmo (11.1-6), como indicam as repetidas exortações, nesta seção, para que se desfrute a vida (cf. 8.15; 9.7-10).
Exortando seus leitores a desfrutar a vida responsavelmente sob o temor de Deus (11.7 – 12.14). Qohelet propõe um equilíbrio entre o hedonismo e o estoicismo que surge quando se insere no quadro, até aqui sombrio, a figura de um Deus pessoal que irá julgar o homem. A vida deve ser intensamente desfrutada em vista de sua brevidade, mas o comportamento deve ser equilibrado pela lembrança solene e inquietante do juízo divino (11.7-10). Além do mais, a senilidade é inimiga do desfrute e a dádiva de Deus não pode ser perdida para ela (12.1-7). O parágrafo final do livro exige dos leitores a atitude apropriada que tornará possível o verdadeiro desfrute da vida, isto é, o temor a Deus, manifesto em obediência aos Seus mandamentos, à luz de Seu juízo que abrangerá a tudo e a todos (12.8-14).