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A Teologia do livro de Daniel

Embora Daniel seja geralmente consignado ao gênero apocalíptico de literatura, o livro contém mais de um gênero. A primeira divisão principal, capítulos 1 – 6, contém principalmente narrativas históricas, com um capítulo dedicado ao material apocalíptico, embora formatado de maneira ligeiramente diferente. O conteúdo do capítulo é apocalíptico em natureza, embora a forma em que é comunicado – uma visão concedida a um rei pagão – difira do costumeiro meio de comunicação, geralmente um êxtase ou uma visão angelical.

Nos capítulos 7 – 12 encontram-se as características típicas da literatura apocalíptica – a presença de mensageiros e intérpretes celestiais, uma abordagem teleológica da história, eventos cataclísmicos que conduzem ao estabelecimento do reino celestial sobre a terra, e o uso de linguagem altamente simbólica. Mesmo nessa divisão, todavia, pelo menos uma parte pode ser legitimamente identificada como profética, uma vez que lida com a predição de eventos históricos futuros (embora falte a essa passagem a vibrante conexão às circunstâncias contemporâneas do povo israelita, que é a marca registrada da profecia bíblica).

A estrutura do livro pode ser vista de ângulos diferentes. Literaria-mente, os capítulos 1 – 6 são narrativas relacionadas às atividades de Daniel na Babilônia durante o império neobabilônico e o estabelecimento da Medo-Pérsia como o poder dominante no Oriente Médio. Os capítulos 7 – 12 relatam as visões de Daniel sobre Israel e o estabelecimento do reino divino. Na primeira divisão, Daniel interpreta os sonhos de outras pessoas; na segunda, os anjos interpretam suas visões. Lingüisticamente, o livro oferece uma introdução em hebraico (1.1–2.3), seguida por uma divisão em aramaico (2.4–7.28), e uma divisão final em hebraico (8.1–12.13). Isso parece correlacionar-se às ênfases em questões gentílicas (caps. 2–7) e história israelita (8–12). Embora o capítulo 7 tenha sido apontado como uma passagem de transição, uma vez que contém tanto história gentílica quanto história israelita (com atenção especial a sua consumação), é parte integral de um arranjo quiástico.

Daniel é um dos poucos homens das Escrituras em torno de quem Deus desenvolveu um bloco de revelação. Sua vida contém aquela combinação de sonhos, visões, milagres e revelação direta que faz dele um dos personagens mais pitorescos da Bíblia. O livro é classificado como literatura apocalíptica, embora boa parte de seu material seja estritamente histórico (capítulos 1 – 6). Esses dois estilos literários são unidos pelo tema da soberania de Yahweh na história e pelo propósito de encorajar Israel a manter suas esperanças no cumprimento das alianças abraâmica e davídica a despeito da triste situação em que a nação se encontrava desde a destruição de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C. A primeira divisão do livro, que apresenta as circunstâncias históricas da presença de Daniel na corte babilônica, serve o propósito do livro indicando como Yahweh poderia sustentar, proteger e demonstrar favor a um judeu exilado mesmo em meio às mais adversas condições (1.3-7) em resposta à determinação desse indivíduo em obedecer a Sua lei a qualquer preço (1.8-16). Fidelidade traz favor e, eventualmente, fama (1.17- 21). A segunda divisão do livro, que enfatiza as soberanas intervenções de Yahweh na história gentílica, contribui para o propósito do livro apresentando o programa divino para as nações (capítulos 2 e 7), enfatizando que quando a História coloca os fiéis de Deus em situações aflitivas devido ao orgulho e à arrogância de governantes humanos, Ele é fiel e poderoso para livrá-los (capítulos 3 e 6), e demonstrando quão efetivamente Yahweh pode humilhar homens que, em virtude de um momento de triunfo passageiro, presumem que obtiveram vitória sobre Aquele que é Vencedor por toda a eternidade (capítulos 4 e 5). O sonho de Nabucodonozor e a visão de Daniel apresentam o mesmo panorama básico de duas perspectivas distintas. O rei recebeu uma visão do governo humano do mundo de uma perspectiva humana, uma estátua majestosa que não conseguia sustentar-se para sempre e seria eventualmente destruída em juízo por um reino eterno estabelecido sem auxílio de poder humano (2.44,45). O aspecto histórico no capítulo 2 apresenta Nabucodonozor exigindo a descrição e explicação de seu sonho, com a ameaça de mudança total de sua liderança por meio de execução coletiva (2.1-13). A isso segue-se a petição que Daniel e seus amigos fazem a Deus por sabedoria e percepção, petição que Deus concede (2.14-23), capacitando-o a relatar e interpretar o sonho (2.24-45). A seguir, encontra-se a concessão de honrarias reais a Daniel e seus companheiros (2.46-49). O capítulo 3 relata o livramento miraculoso dos amigos de Daniel na ocasião em que Nabucodonozor tentou afirmar sua suserania sobre o império, obrigando todos os seus vassalos e subalternos a adorar uma estátua que ele fizera construir próximo a Babilônia. Essa narrativa transcende sua realidade histórica, oferecendo um quadro da milagrosa preservação de Israel em resposta a sua fidelidade. Esse incidente pode ter acontecido em 594 a.C., quando Zedequias, rei de Judá, fez uma visita a Babilônia (cf. Jr 51.59,60) com outros reis vassalos. O propósito da cerimônia em Daniel 3, todavia, parece ter sido mais do que político, pois ela envolvia adoração (3.1-7); por ter se recusado a prostrarse perante a imagem, os três jovens administradores incorreram na indignação real (3.8- 18), sendo submetidos à prova da fornalha de fogo ardente (3.19-23). Sua milagrosa libertação teve forte impacto emocional sobre o rei, que acabou por honrar a eles e a seu Deus (3.24-30).

O capítulo 4 contém uma história mais pessoal que serve o propósito de demonstrar a soberania de Yahweh sobre o homem e Sua disposição de manifestar Seu caráter àqueles que se humilham perante Ele. O orgulho de Nabucodonozor por suas realizações é o estopim dos eventos descritos em seu sonho (4.9-18, 20-26). O maior monarca do mundo foi humilhado a ponto de assemelhar-se a um animal antes de perceber Quem realmente detém as rédeas do poder sobre os reinos da terra (4.31-37). O mesmo padrão de orgulho humano e humilhação se acha presente no capítulo 5, em que, no entanto, Deus não oferece uma segunda oportunidade. Belsazar, príncipe regente em nome de seu pai, Nabonido, procurou encorajar seu desanimado exército com uma celebração sem limites, para a qual ordenou que fossem trazidos os utensílios de ouro do templo de Yahweh em Jerusalém, que serviriam como prova da supremacia babilônica sobre outros deuses e suas nações (5.1-4). Sua festa blasfema foi interrompida por um sinal divino, a célebre escrita na parede (5.5-9), que é interpretada e aplicada à arrogância e idolatria de Belsazar (5.13-28). Ao contrário de Nabucodonozor, Belsazar não recebe uma segunda oportunidade, pois naquela mesma noite (5.30,31), 12 de outubro de 539 a.C., os persas, sob o comando do general Gubaru (Gobrias), invadiram a Babilônia e executaram o devasso príncipe. O capítulo 6 apresenta outra confrontação entre a idolatria e a fidelidade a Yahweh. Dessa feita a questão não é prostrar-se perante um ídolo, mas orar a um ser finito e mortal. A fidelidade de Daniel no recém-formado governo persa na satrapia de Babilônia levou a uma trama em que ele foi acusado perante Dario (6.10,11) e condenado à execução na cova dos leões (6.12-18), onde foi milagrosamente preservado, acabando por ser libertado pelo próprio rei e reconduzido a seu cargo, ao passo que seus acusadores receberam a punição antes designada para ele (6.19-24). A soberania de Yahweh é reconhecida por mais um governante mundial (6.25-28). O capítulo 7 cobre o mesmo assunto do capítulo 2. Uma visão de quatro animais (7.1- 8), de Yahweh, como o Ancião de Dias i.e., o Eterno, e do Filho do Homem (7.13,14) é seguida por uma detalhada interpretação do curso do poder gentílico sobre a história humana (7.15-28).

O elemento novo nessa visão é a revelação sobre o ―pequeno chifre‖ do tempo escatológico, um governante mundial que emergirá do quarto animal/reino (7.21-28). Ele cometerá o último e maior ato de húbris (7.25), que será diretamente punido pelo Filho do Homem, quando este estabelecer Seu reino sobre a terra (7.26-28). Começando com o capítulo 8, o foco da atenção deixa de ser a história mundial e passa a ser a história de Israel. O capítulo 8 contém um esboço da história do povo escolhido sob a hegemonia persa e helênica, representadas por um carneiro e um bode, respectivamente (8.1-14). O grande chifre do bode representa Alexandre o Grande, e os quatro chifres resultantes de sua quebra aludem aos quatro reinos estabelecidos depois da divisão do império macedônio entre os quatro principais generais de Alexandre. O pequeno chifre do capítulo 8 parece ser mais historicamente localizado como Antíoco IV Epífanes (ou Epifânio), que reinou de 175 a 163 a.C. Os números desse capítulo, os quais têm sido grosseiramente mal interpretados ao longo da história, mais provavelmente se referem ao tempo transcorrido da remoção do altar de sacrifícios por Antíoco IV e sua restauração por Judas Macabeu 3 anos depois (dezembro de 165 a.C.). A interpretação da visão é concedida por um anjo, uma característica marcante da literatura apocalíptica (8.15-27). O capítulo 9 contém aquilo que alguns consideram a profecia crucial do Antigo Testamento, pois traça o programa divino para o povo de Israel. A visão foi concedida em resposta à oração de confissão e petição feita por Daniel (9.3-19) depois de entender (de acordo com a predição de Jeremias) que o castigo de Israel duraria 70 anos. A resposta divina está alinhada com o número setenta. O terminus a quo (ponto de partida) das 70 semanas de anos é o decreto de Artaxerxes autorizando a reconstrução das muralhas de Jerusalém, promulgado em Nisã de 444 a.C. O terminus ad quem (a data limite) das primeiras 69 semanas é a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no dia 9 de Nisã de 33d.C. A última semana, ainda futura, guarda o tempo de perseguição dos santos descrita no capítulo 7, que servirá de preparativo para o estabelecimento do reino descrito nos capítulos 2 e 7.

A visão final de Daniel encontra-se nos capítulos 10 – 12. O capítulo 10 fala do conflito espiritual em que Daniel se achou envolvido (10.12-14) e de seu sofrimento físico e sua recuperação associados à própria visão (10.1-11, 15-19). Começando com 10.20, o mensageiro angelical descreve, a médio prazo, a história da terra de Israel, o período de tempo em que a nação israelita se viu apanhada no conflito entre os reinos helênicos da Síria e do Egito, muitas vezes em uma gangorra bélica que ameaçava a sobrevivência de Israel e da fé israelita. Quatro reis persas se seguiriam a Ciro antes que a supremacia persa fosse quebrada pelos gregos (11.2) em Platéia e Salamina (480 a.C.). A isso se seguiria a conquista do império persa pelos macedônios (11.3) e a divisão do vasto império de Alexandre (11.4). Dessa divisão surgiram as guerras siro-egípcias entre as dinastias dos Selêucidas e dos Ptolomeus, respectivamente, que duraram mais de cem anos (11.5-20). Daniel deu particular atenção ao papel de Antíoco IV Epífanes, que representou a mais séria ameaça à cultura, fé e raça judias (11.21-35). A parte final da visão trata da realidade última da qual Antíoco era uma manifestação histórica em escala menor (11.36–12.3). Essa passagem está ligada com a septuagésima semana do capítulo 9 e com o pequeno chifre do capítulo 7. Nações de toda a bacia mediterrânea se envolverão em uma conflagração final, em que o rei de semblante feroz encontrará seu fim e castigo (11.40-45).

Daniel promete que o remanescente fiel de Israel será preservado em meio aos sofrimentos da septuagésima semana (12.1, 5-11), ao passo que os que morreram na justiça têm a promessa da ressurreição física (12.2,3), de modo a desfrutar a bênção definitiva do reino milenar (12.12, 13). Assim, o livro termina com a concretização do objetivo da História. Na verdade, apresenta o objetivo inquestionável da revelação bíblica, apontando ao homem o plano divino de ―fazer convergir em Cristo todas as coisas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra‖ (Ef 1.10). Nesse plano e para esse plano, a preservação de Israel é um elemento chave, e o livro de Daniel demonstra sua verdade e realidade.

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