A última característica preeminente na redenção de Êxodo é a linha expiatória que o transpassa. Isso consiste na Páscoa. Não obstante sua soberania, a graça não podia ser exercida sem ser acompanhada da expiação. Em virtude desse rito, o destruidor passou por sobre as casas dos israelitas.
De fato, o nome pasach é derivado disso. O verbo significa “saltar”, daí “pular por sobre” ou “poupar”. Êxodo 12.13 e 27 explicam a etimologia dessa maneira [cf. também Is 31.5]. Sem dúvida, como no caso de Yahweh, outras explicações naturalistas têm sido propostas também. A palavra é derivada da passagem triunfante do Sol pelo ponto equinocial no signo de áries; Páscoa, então, teria sido, originalmente, o festival do equinócio da primavera. O nome também tem sido explicado a partir da dança ritual executada no festival da primavera
De acordo com o relato, o sangue posto nas portas dos hebreus não era um mero sinal pelo qual a habitação dos hebreus pudesse ser reconhecida. Ele deve ter sido isso também, mas sua real eficácia era derivada de seu caráter sacrificial. Isso é afirmado explicitamente em Êxodo 12.27: “É o sacrifício da Páscoa a Yahweh, que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito” [cf. Êx 34.25; Nm 9.7-10; IC o 5.7]. Não obstante essas declarações inequívocas, a maioria dos teólogos protestantes antigos negou o caráter sacrificial da Páscoa. Isso foi em reação à doutrina romanista da missa. Em apoio a essa doutrina, os romanistas apelavam para a Páscoa como o sacrifício correspondente típico do Antigo Testamento. A fim de privá-los desse argumento é que os protestantes foram a ponto de negar que a Páscoa tivesse sido um sacrifício.
Agora, se ela foi um sacrifício, surge a próxima questão sobre a que classe de sacrifícios ela pertence. Ela possuía algumas características peculiares a si mesma, mas no todo terá de ser classificada com as ofertas pacíficas. Não obstante a ênfase lançada no elemento expiatório, ela não pode ser incorporada sob as ofertas pelo pecado, pois o ofertante não estava autorizado a comer delas, enquanto que era obrigatório comer a Páscoa. A ideia preeminente em toda oferta pacífica era a da /5>m7^-comunhão com Deus. A refeição era um expoente do estado de paz e bênção desfrutadas. Porém, precisamente porque essa refeição sucedia o sacrifício propriamente dito, deve-se reconhecer nela um lembrete da dependência necessária de tal estado privilegiado na expiação que o antecede.
É um erro pensar que somente nas ofertas pelo pecado a expiação era providenciada. Onde quer que haja a morte e a manipulação do sangue, há expiação, e ambos estão presentes na Páscoa. O elemento de purificação, estreitamente relacionado com aquele da expiação, é simbolizado separadamente no fato de que a aplicação do sangue tinha de ser feita com um ramo de hissopo. O hissopo aparece em todo lugar como um instrumento de purificação. A Páscoa tinha os seguintes pontos de diferença com relação às ofertas pacíficas ordinárias, reguladas mais tarde pela Lei: tinha e conservava o pano de fundo histórico; por meio das ervas amargas que eram comidas com ela, a amargura da escravidão sob os egípcios foi mantida viva na memória de Israel. Mais ainda, ela era distintamente uma festa nacional, enquanto que as ofertas pacíficas ordinárias eram de caráter privado.
Assim ela era celebrada, não em privado, mas no contexto de família. A carne não podia ser retirada da casa. Se uma família não fosse capaz de consumi-la toda, duas famílias tinham de se juntar. Nenhum osso do cordeiro poderia ser quebrado e, por essa razão, ele era assado no fogo em vez de ser cozido em água. Essa relação estreita com a vida de Israel explica por que a Páscoa não foi instituída até que a organização de Israel como nação estivesse próxima. A circuncisão data do tempo de Abraão; a Páscoa, do tempo de Moisés.
O criticismo moderno nega totalmente a origem histórica e comemorativa da Páscoa. Sua ligação com o êxodo era uma reflexão posterior. Com o as outras festas, ela existia primeiramente como uma festa da natureza de significado nomádico ou agricultural. A maioria desses autores assume que a Páscoa era originalmente a festa do sacrifício do primogênito; assim entendem Wellhausen, Robertson Smith e outros. Esse sacrifício do primogênito é geralmente entendido sob o princípio do pagamento de tributos à divindade. Robertson Smith, todavia, excluiria a ideia toda de pagamento de tributo da religião primitiva de Israel. Ele explica a entrega do primogênito pela característica de tabu de cada primeiro nascimento. Há alguns críticos que são completamente contra a relação do rito com a dádiva do primogênito à divindade. Benzinger (ver artigo na Encyclopaedia Biblica) considera que a Páscoa é um antigo ritual de sangue, por meio do qual, em tempos de pestilência e outras ocasiões de perigo, buscava-se proteção contra o destruidor. Isso se aproxima mais uma vez, pelo menos em seu conceito geral, do relato do Êxodo.
Não há necessidade de se estar por demais ocupado em função dessas várias teorias. Elas de maneira alguma produzem descrédito à representação bíblica. Em analogia com o que conhecemos sobre a circuncisão, a observância da Páscoa em Israel deve ter sido instituída em uma base antecedente, apesar de que, sem sombra de dúvidas, ela estava investida de um novo significado. Sabemos que os hebreus estavam previamente acostumados a observar um festival na primavera por causa de sua solicitação a faraó [Êx 8.1,27], Essa deve ter sido uma festa do sacrifício do primogênito. Quanto à teoria de um antigo ritual de sangue, do mesmo modo, Deus pode tê-lo incorporado na festa historicamente instituída.
O estabelecimento do berith (aliança) entre Yahweh e Israel é o próximo assunto para consideração sob o cabeçalho do conteúdo da revelação mosaica. Esse evento memorável é descrito em Êxodo 24. Algumas preparações para a promulgação do Decálogo deveriam ser lidas com este capítulo, Êxodo 19. Deve-se notar que o berith aparece pela primeira vez como um arranjo bilateral, ainda que isso não seja de maneira alguma a razão para que ele seja chamado de berith. A razão está inteiramente na cerimônia de ratificação. Quanto ao arranjo em si, uma ênfase grande é colocada na aceitação voluntária do berith por parte do povo. É verdade que a iniciativa em estabelecer os termos é estritamente por parte de Yahweh. Nenhuma discussão e nenhuma cooperação entre Deus e o homem são concebidas, do ponto de vista da narrativa, como sendo os determinantes de sua natureza e conteúdo. Nesse aspecto, ele é exclusivamente o pacto de Yahweh. Ainda assim, o berith é apresentado perante o povo e seu assentimento é requerido [Ex 19.5, 8; 24.3].
E precisamente essa ênfase posta sobre a voluntariedade da união que leva os críticos a negarem a historicidade do evento. Antes dos grandes profetas, a religião de Israel não possuía tal natureza voluntária. Se aqui ele é representado como possuindo aquela característica, a razão só pode ser, segundo as premissas dos críticos, que essa parte dos documentos está sob a influência de ideias proféticas, e o relato não reflete a História. O pensamento de que Yahweh e Israel estão unidos num relacionamento ético e livre foi desenvolvido primeiramente pelos profetas. Mas mesmo os mais antigos desses profetas não o representam ainda, como se um berith existisse embasando a religião de Israel. Essa fórmula aparece pela primeira vez em Deuteronômio, escrito (de acordo com o esquema crítico) na segunda metade do século sete. Supõe-se que seu aparecimento abrupto se dá em função do que 2Reis 22 relata ter acontecido, o fato de o povo ter entrado num acordo solene para observar essas ordenanças deuteronômicas.
Agora, uma vez que, para uma maior impressão e efetividade, pensou-se ser melhor derivar de Moisés esse livro legal recentemente produzido e quase que descoberto recentemente; e, uma vez que a intenção era a de sujeitar o povo a ele por meio de um berith, surgiu a necessidade e a consistência do argumento requeria que a matéria fosse representada como um procedimento seguido no tempo de Moisés. Tudo que era requerido do povo agora era simplesmente uma reafirmação da antiga aceitação do berith que data dos tempos de Moisés. Desse modo, de acordo com esses escritores, o conceito de berith fez sua entrada na historiografia da religião do Antigo Testamento; ele foi introduzido subsequentemente, de acordo com eles, em todos os documentos mais antigos nos quais ele não havia ocorrido previamente.
A fraqueza dessa construção crítica reside em dois pontos. N o todo, demasiada importância é atribuída à presença, ausência ou frequência do termo berith para determinar o caráter essencial da religião do Antigo Testamento. O termo, por si, não denota bilateralidade ou unilateralidade, voluntariedade ou necessidade, e não é adequado para servir como um indicador da natureza interna da própria religião. Uma religião deve ter um berith relacionado a ela, no qual, contudo, muito pouco da livre escolha mútua tenha entrado. Os críticos, nesse ponto, ainda estão sob o feitiço da preconcepção dogmática de que berith é um sinônimo para “contrato” ou “acordo”. Além disso, a narrativa de 2Reis 22 de maneira alguma esclarece a origem do conceito de berith-religião como alegado pelos críticos. O que é descrito nesse capítulo não é um berith entre Yahweh e o povo, mas entre o rei e o povo na presença de Yahweh.
Quanto aos procedimentos descritos em Êxodo 24, nós notamos que eles são constituídos dos mesmos elementos que estão presentes na transação da Páscoa. De fato, essa pode ser apropriadamente chamada de uma antecipação da realização do berith no Sinai. Primeiro houve a expiação sacrificial ou purificação. Isso foi seguido pelo compartilhar da refeição sacrificial. D o mesmo modo, nós encontramos a combinação desses dois na presente ocasião. Que a refeição sobre a montanha representa o alvo e consumação do berith pode ser inferido do fato de que o relato inicia com uma injunção concernente a ele, apesar de que isso não podia ser executado até que todas as coisas decorrentes fossem feitas.
Por causa das circunstâncias dessa separação por sete versículos entre a injunção e seu cumprimento, inferiu-se que dois relatos diferentes sobre a execução do berith foram entrelaçados; um, de acordo com o qual o berith foi feito na cerimônia da refeição com Yahweh na montanha [vs. 1, 2, 9-11], e o outro, de acordo com o qual o berith foi feito por meio dos sacrifícios [vs. 3-8]. Essa dissecação não somente é desnecessária, mas impossível. Os sacrifícios consistiam em parte das ofertas pacíficas e nenhuma oferta pacífica era com pleta sem uma refeição. Entretanto, a refeição descrita nos versículos 9-11 é tão inequivocamente uma refeição sacrificial que ela se torna ininteligível sem o relato precedente do sacrifício. O sacrifício inclui o elemento de expiação. Isso era indispensável para a fundamental execução do berith; todo aquele que entrasse numa união desse tipo primeiramente se purificaria por meio do sacrifício ou outro procedimento. Já antes da entrega do Decálogo, o povo havia se unido para se santificar e lavar suas roupas, particularmente os sacerdotes [Êx 19.10,22]. Ainda assim, essa suposição, tão natural em si mesma, tem sido rejeitada por escritores recentes para dar lugar a uma teoria moderna quanto ao significado do sangue no sacrifício. De acordo com eles, a função do sangue não é (pelo menos, não até tempos comparativamente posteriores) expiar, mas efetuar uma união sacramental, na qual as partes compartilham, no sangue, uma vida em comum. Isso, em si, concederia um significado consideravelmente adequado aqui, uma vez que o berith pode facilmente ser concebido como uma união vital entre Yahweh e Israel.
Conquanto a ideia seja atraente, existem poucos pontos de contato no Antigo Testamento para tal conceito de berith. O berith reside não na esfera da vida mística; ele pertence à esfera da segurança consciente. Além disso, a divisão do sangue em duas partes e o uso separado de cada uma delas não se encaixam automaticamente nessa teoria; uma vez baseado nela, teria sido apropriado unir mais intimamente a aplicação do sangue no altar, quanto a Yahweh [v. 6], e sua aplicação ao povo [v. 8]. O modo natural de entender isso é que, antes que o sangue pudesse agir em benefício do povo, ele tinha de realizar seu trabalho com referência a Yahweh, e isso dificilmente consiste em fazer outra coisa que não seja cumprir o pré-requisito da expiação.
O livro que Moisés escreveu, e com referência ao qual o berith foi estabelecido, continha todas as palavras de Yahweh, ou com o o versículo 3 expressa: “todas as palavras e todos os estatutos”. Alguns dizem que as palavras são o Decálogo e os estatutos tudo o que se segue até o fim do capítulo 23. Essa é uma interpretação possível, apesar de que se possa objetar a ela dizendo que o Decálogo foi endereçado ao povo pela própria boca de Yahweh. A seu favor temos a dificuldade de se entender “as palavras” de 20.22-26, no caso de serem interpretadas como não fazendo parte do Decálogo.
O berith tinha, é claro, uma referência nacional para Israel como um todo. Isso está implícito na convocação para subir ao monte endereçada aos representantes do povo [v. 1], e também pelas doze colunas construídas com o altar [v. 4],
Finalmente, o encontro com Yahweh na conclusão da cerimônia deve ser entendido em estreita ligação com a relação que havia sido estabelecida. A frase “o Deus de Israel” é altamente significante. Por meio da realização do berith, Yahweh se tornou “o Deus de Israel” nesse novo sentido profundo. A visão sobre a qual se fala não é uma visão ordinária para comunicar conhecimento.
Ela é o cumprimento da aproximação sacramental e da extraordinária união com Yahweh. Quanto ela era diferente da visão ordinária da deidade é indicado pelas palavras: “ele não estendeu a mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel” [v. 11]. Ordinariamente, é considerado como perigoso ou mesmo fatal ter um vislumbre da deidade. Por meio do berith, isso agora foi mudado. Encontramos uma antecipação disso na história de Jacó [Gn 32.30]. Que a visão tem suas limitações está implicado no versículo 10b.
—— Retirado de: Geerhardus Vos – Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento.