Dito isso, o livro apresenta mais anseios dignos de nota. Os amantes de Cantares compartilham um claro anseio de construir uma intimidade relacional. Talvez esse anseio seja mais sutil, mas nem por isso é menos real. Infelizmente, hoje temos muitas maneiras de falar dos relacionamentos de forma negativa, porque sabemos que podem ser destrutivos. Por isso, usamos palavras como “vício”, “co-dependência”, “capacitação”. E com certeza os relacionamentos, por serem complexos e cruciais para a personalidade humana, podem ser perigosos. Esse anseio por intimidade relacional pode gerar todo tipo de problema.
Contudo, a Bíblia não apresenta o eremita solitário como modelo para a existência humana. Como disse a Adão no jardim do Èden, Deus não nos criou para ficarmos sozinhos. Essa é uma regra geral, mas não quer dizer que nunca seja bom para o homem estar sozinho. Fomos feitos para conhecer e ser conhecidos. E não devemos perceber apenas a atração física em Cantares. Por trás da descrição desinibida, até arrebatadora, da atração física, fica claro que cada parceiro deseja um relacionamento interpessoal pleno e verdadeiro. Eles não têm apenas o desejo físico de possuir e ser possuído, mas têm também o desejo pessoal de conhecer e ser conhecido. E esse livro lembra-nos, mais uma vez, que esse conhecimento é bom. Não precisamos manter qualquer noção falsa, superespiritual sobre “seguir sozinho” com Jesus, nem considerar a necessidade de relacionamentos pessoais como algo errado ou um sinal de fraqueza. Essa necessidade é natural, saudável e boa. E inerente ao ser humano.
Cantares celebra o relacionamento pleno que o amor físico consuma. Um escritor aponta para o que chama de uma das ironias estimulantes da vida humana ao observar que o ato mais íntimo de “conhecer” outro ser humano ocorre “pele com pele”:
Eis uma ironia pungente: aqui estamos nós com nosso alto conceito de nós mesmos como seres intelectuais e espirituais, e a forma mais profunda de conhecimento para nós é o contato natural pele a pele. É humilhante. O que fazem dois membros dessa espécie cerebral feita à imagem de Deus quando alcançam os píncaros da comunhão entre eles mesmos? Pensam? Especulam? Meditam? Não, eles tiram suas roupas. Eles querem unir seus cérebros! Não, essa é a ironia mais assustadora. Eles buscam que a união os leve, quase literalmente, na direção oposta em que estão seus cérebros.
Embora eu aprecie a adoção franca da realidade de nosso corpo físico por esse autor, não posso concordar totalmente com ele. Ele deixa de lado o fato de que o amor físico não é um contexto menor. Não é apenas, como diriam, com insensibilidade e desprezo, alguns colegas estudiosos, a “troca de fluídos corporais”. E Cantares não é um livro apenas sobre as relações físicas entre dois animais. Afinal, é um livro de palavras! Tem discurso! Tem poesia! Tem comunhão entre pessoas. A verbalização dos desejos, dos anseios, das necessidades, das esperanças e até dos medos é um aspecto crucial do relacionamento entre o amante e a amada.
Ansiamos por relacionamento humano. Deus nos fez assim. Portanto, observe como esse livro impulsiona-nos, como leitores, com os chamados e as respostas: o amante chama, e a amada responde; a amada fala, e o amante responde. Ele apresenta um relacionamento em que mutualidade. Há reciprocidade no amor deles, porque Deus pretende que nossos desejos físicos se satisfaçam no contexto do nosso desejo comunal, social e interpessoal. O bom relacionamento físico só pode acontecer no contexto de um bom relacionamento, por isso, não é mero acidente que o sexo deva ser reservado ao casamento. Ter sexo sem casamento é a mesma coisa que se mudar para uma casa que você não adquiriu. Nesse tipo de sexo, há um aspecto experimental, inseguro — como uma transgressão — , que não é o que Deus pretende para o sexo: uma experiência profunda e satisfatória do amor físico e relacional.
De volta ao início da Bíblia, encontramos o que Deus pretende para a união física entre marido e esposa a fim de prover parte da própria fundação do relacionamento deles: “Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne” (Gn 2.24). A seguir, Jesus confirma a lição desse versículo: “Assim, já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem” (M c 8b,9). Você percebe o que isso significa? A intimidade física entre o homem e a mulher representa e indica algo mais — a intimidade relacional, a união de personalidades, não apenas de corpos. Deus pretende que dois amantes casados desfrutem o prazer físico e relacional do seu amor. E Deus nos dá um relacionamento mais profundo por intermédio do amor físico no casamento.
Cantares celebra a pessoa que o amor físico nos ajuda a ser, e a identidade que ele nos ajuda a encontrar. Muito do que o amante e a amada são como indivíduos é conseqüência do relacionamento deles. Eles se conhecem e se definem conforme o relacionamento que têm um com o outro — como amante e amada. “Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu” (6.3). E: “Eu sou do meu amado, e ele me tem afeição” (7.10). Fica claro que é por isso que os relacionamentos pessoais podem ser tão perigosos. Você brinca com as coisas mais profundas em relação a você e ao outro se entra em um relacionamento errado, sem a estrutura estabelecida pela Bíblia. Por outro lado, você encontra grande realização pessoal quando entra em um relacionamento certo, de acordo com a estrutura estabelecida pela Bíblia. Portanto, de forma notável, esse livro descreve a enorme realização pessoal disponível no amor marital monogâmico e exclusivo! Claro que isso não se refere ao que as pessoas acham hoje, quando mencionamos monogamia matrimonial exclusiva. Há pouco tempo, vi um trailer de um filme em que um personagem dizia, de forma ofensiva, ao outro: “Lembre-se, eu posso dormir com quem quiser. Não sou eu que sou casado. Você é!” Que perspectiva terrível! Da perspectiva dos que querem “liberar” o amor sexual de seus limites, o casamento pode parecer uma “escravidão”. No entanto, o amor sexual, uma vez liberado, fica semelhante à água derramada do copo — é despejada no chão, corre em todas as direções, não é coletada em lugar algum e, no fim, dissipa-se e desvanece. O amor sexual “livre” perde todo sentido que se supõe que tenha. Em Cantares não é assim. Esse livro não é a respeito de um relacionamento qualquer. È sobre o amor marital exclusivo. Por isso, a amada promete que se “[guardará]” para o seu amor (7.13). E o livro, como um todo, não apresenta um retrato de lascívia e de fantasia, mas do amor monogâmico e satisfatório.
De forma extraordinária, o casamento monogâmico designado por Deus traz uma inteireza notável. Talvez, em outras áreas da vida, o seu papel como homem ou como mulher não esteja claro para você, mas isso não acontece nessa área. Duas coisas são dignas de nota. Primeiro, o casamento traz um tipo de inteireza quando é preservado de outros amantes. Deus criou-nos para nos unirmos em casais. Por essa razão, você pode esperar encontrar muita satisfação e contentamento com uma outra pessoa. Quando os amantes de Cantares conversam sobre o que fazer com a irmã mais nova que ainda não está preparada para o amor, eles decidem protegê-la e conservá-la casta. A seguir, a própria irmã responde: “Eu sou um muro, e os meus peitos, como as suas torres; então, eu era aos seus olhos como aquela que acha paz” (8.10). Parece que o fato de a irmã guardar-se para o marido é parte do que trará paz para o futuro relacionamento. Na verdade, aqui, a palavra “paz” é a hebraica shalom, que fala da paz proveniente da inteireza mais integral e harmoniosa. Assim, o compromisso exclusivo e puro que ela levará para seu marido, e também o que ele levará para ela, fornece um grande senso de inteireza e de harmonia a ambos, no relacionamento e como indivíduos. Segundo, observe que o casamento, assim parece, dá esse sentimento de inteireza mesmo se não houver filhos. O livro não menciona filhos em momento algum, o que chama a atenção principalmente em vista do ambiente do livro ser o Oriente Próximo da Antigüidade.
Deus nos dá um conhecimento maior de nós mesmos por intermédio do amor físico no casamento.
——– Retirado de: Mark Dever – A Mensagem do Antigo Testamento.
Leia a continuação aqui:
• Introdução a Cantares
• Resposta à Revolução Sexual
• Como Desfrutar da Intimidade Física
• A Celebração Bíblica do Prazer
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