A ausência de uma seqüência cronológica torna mais difícil delinear o argumento do livro. Parece, todavia, que o tom geral da profecia se estabelece no capítulo 1, quando Jeremias recebe seu chamado da parte de Yahweh (1.4-10) e recebe duas visões concernentes ao resultado de seu ministério profético (1.11-19).
1.10 parece ser um versículo chave no livro, uma vez que sua idéia básica é repetida em 11.17; 18.7-10; 24.6; 31.28, 40; e 45.4. As duas metáforas de um fazendeiro arrancando uma planta ruim e de um construtor derrubando uma parece mal construída (revertidas no Livro da Consolação, caps. 30–33) descrevem de maneira exata o julgamento necessário que Yahweh, o Deus da aliança de Israel, traria contra uma nação cínica e impenitente. A visão da amendoeira (דֵ קָשָֹ ,שֵ דד ,em hebraico) oferece ao profeta uma clara garantia de que sua impopular mensagem de juízo seria cumprida em sua própria geração graças à vigilância pessoal de Deus (cf. o termo hebraico דֵק ֹש ,šōqēḏ‚, um criativo jogo de palavras) sobre Sua palavra revelada (cf. 1.11, 12). A visão da panela fervendo usa uma metáfora comum para o julgamento (fogo e calor) para indicar a direção da qual viria o desastre contra Judá e Jerusalém (cf. Jr 39.2, 3 quanto ao cumprimento dessa profecia). Tal destruição seria o resultado da idolatria de Judá. Um quarto tema delineado no capítulo 1 e presente em todo o livro é o da intensa oposição (cf. 1.17-19). Conforme predito pelo Senhor, príncipe, sacerdote e camponês haviam-se rebelado contra uma mensagem de aparente capitulação para o inimigo. Toda a sociedade opôs-se ao profeta, a começar com sua própria família e sua cidade natal (11.18-23), e os intensos apelos emocionais de Jeremias a Yahweh (que às vezes chegam às raias da blasfêmia; cf. 15.17,18) refletem a magnitude de sua luta interna contra a constante rejeição que ele e sua mensagem sofreram do povo de Judá. Jeremias sabia desde o princípio o que seu ministério seria, que capacitação receberia, para que tipo de pessoa ministraria e que tipo de mensagem ele teria de pregar. De seus colegas sacerdotes, corrompidos pela idolatria depois que o fervor da reforma promovida por Josias havia passado, ele sofreu oposição em virtude de ter denunciado a adoração idólatra no templo, do qual foi banido (cf. 36.5). Líderes de Judá, ímpios e violentos, chamaram Jeremias de traidor e puniram-no de acordo com a acusação. O povo, cujo bem-estar ele buscou em profecia e prece por mais de quarenta anos, negou a Jeremias a possibilidade de morrer em sua terra natal, forçando-o a ir para o Egito em sua tentativa desesperada de escapar à ira de Nabucodonozor (cf. 43.6,7). Ironicamente, somente estrangeiros (um etíope e os caldeus) trataram o profeta com o respeito que merecia. Sua alma terna não permaneceu insensível aos maus-tratos recebidos, pois suas queixas profundamente sentidas perpassam sua profecia e retratam um pouco da tristeza do próprio Yahweh pela condição lastimável de Seu povo escolhido. Os capítulos 2 a 45 apresentam a ira divina contra uma nação endurecida, marcada para a destruição, da qual apenas um pequeno remanescente partilharia das bênçãos prometidas por Yahweh A primeira divisão contém doze oráculos de julgamento contra Judá (caps. 2–25). Entre os pecados de Judá merecem destaque sua infidelidade para com seu marido pactual (2.1–3.5) e a futilidade de uma religião falsa (7.1–10.25). Jeremias chama a atenção ainda para a total incapacidade de Israel de escapar à soberania de Yahweh (18.1–20.18), e para o agudo contraste entre a liderança de Judá, corrupta e inepta, e o Renovo Justo que Yahweh levantará para governar sobre Seu povo (21.1–23.40). Ironicamente, Jeremias termina essa divisão do livro afirmando que o cativeiro é, em última análise, o caminho para a bênção de Deus (24.1–25.38).
A segunda divisão apresenta a rejeição de Jeremias e de sua mensagem pelos líderes e pelo povo de Judá (26.1–29.32). Seguidores influentes (poucos) ajudaram Jeremias a escapar do destino brutal de Urias, cuja morte fora ordenada pelo rei Jeoiaquim (26.23). Reis calculistas e profetas subservientes zombaram dos conselhos de Jeremias para que se submetessem a Nabucodonozor (27.1– 28.17) e os exilados em Babilônia aparentemente preferiram falsos calendários proféticos à amarga mensagem divina de uma vida toda no exílio (29.1-32). Ironicamente (e intencionalmente também) é aqui, entre duas seções que lidam com a rejeição da mensagem de Deus por Judá, que se encontra a brilhante jóia de esperança da profecia de Jeremias − a promessa da Nova Aliança, quando Yahweh soberanamente restaurará Israel e garantirá a um remanescente fiel as bênçãos que Israel desperdiçou ao longo de sua história (30.1–33.26). A ordem dos verbos é dramaticamente revertida aqui; aquilo que fora plantado e arrancado não mais será arrancado, mas será plantado para sempre e florescerá sob o cuidado de Deus (31.28). A última divisão dessa parte devotada a Judá expõe a desintegração final da nação como resultado de sua contínua rejeição do mensageiro de Deus e de sua mensagem (34.1–45.5). Uma nação insensível, sem qualquer consideração por sua divina aliança (34.1-22) é contrastada com os fiéis recabitas, que se mantiveram leais à sua aliança humana (35.1-19). A rejeição provocante das palavras de Yahweh por Jeoiaquim (36.1-32), e a hesitação de Zedequias diante da mensagem divina de juízo (37.1–38.28) refletem de forma acurada a condição do povo. Conforme fora predito, a destruição vem (cf. 1.15), determinando o destino tanto dos crentes [poucos] e dos rebeldes muitos. A seção final dessa divisão revela quão profunda se tornara a rebeldia dos judeus (40.1–45.5). A despeito da promessa divina de bênção para os que permanecessem em Judá depois da destruição de Jerusalém, os sobreviventes persistem em fazer do homem [Egito], e não de Deus, a sua esperança (cf. 17.5,6) e, por isso, são uma vez mais amaldiçoados com destruição e cativeiro (43.8– 44.30). Como um contraste para tal insensatez, o profeta registra o cumprimento da promessa divina de preservação do remanescente fiel, ilustrado por Baruque, o fiel amanuense de Jeremias. A terceira parte do livro focaliza as nações circunvizinhas. Estas também caem sob a ira de Yahweh e o escopo do ministério profético de Jeremias (cf. 1.10). O destino do Egito é ser conquistado por Babilônia, de modo que Israel aprenda (46.1-28). A Filístia será esmagada de ambos os lados (47.1-7). Moabe cairá em razão de seu orgulho e sua complacência (48.1-47); Amom e Edom pagarão por seu orgulho e traição (49.1-22). Arameus e árabes sofrerão o peso das expedições de conquista de Nabucodonozor (49.23-33). Elão terá seu poder militar quebrado, mas também experimentará uma renovação escatológica (cf. também 48.47; 49.6). Em harmonia com as profecias de Isaías e Habacuque, a própria Babilônia será punida como prova da soberania de Yahweh sobre as nações e como garantia da restauração de Israel (50.1–51.58). Um ato simbólico alertaria, portanto, os judeus contra um apego excessivo ao seu lugar de exílio (51.59-64). A quarta e última parte do livro é a vindicação histórica de Jeremias e de sua mensagem de esperança definitiva por meio do castigo. A humilhação e quase extinção de Judá sob o ataque de Nabucodonozor não foram o fim da história israelita, pois a linhagem e a esperança davídica foram preservados em Babilônia (52.1-34).
PROBLEMA HERMENÊUTICO
Embora haja vários problemas hermenêuticos menores em seu livro, a dificuldade mais famosa em Jeremias é sua profecia sobre a Nova Aliança (32.31-34), mais precisamente a relação dessa Nova Aliança com Israel e com a Igreja (cf. Hb. 8.8-12). Várias tentativas de resolver esse problema são relacionadas a seguir de forma resumida. A maioria dos eruditos críticos vê essa nova aliança como uma mera reafirmação da aliança mosaica (G. Couturier, “Jeremiah”, JBC, 1.327). Embora haja elementos de continuidade entre as duas, este ponto de vista ignora abertamente as palavras de 31.32 (―não conforme o pacto que fiz com seus pais…‖). Além do mais, essa nova aliança é incondicional, em contraste com a natureza condicional da aliança mosaica (cf. Êx 19.15). Mais ainda, essa aliança tem a promessa de ser eterna (cf. Jr 31.35-37), o que não é verdadeiro em relação à aliança mosaica (cf. Hb 8.13). Por fim, as bênçãos escatológicas prometidas em 31.34 e em passagens paralelas jamais tiveram cumprimento sob a aliança mosaica. Em geral, os amilenistas vêm a Nova Aliança como algo relacionado exclusivamente à Igreja, o que é coerente com seu ensino de que não há mais lugar para Israel no plano de Deus. Tal ponto de vista é aparentemente apoiado por Hebreus 8.8-12, que fala da Nova Aliança como já introduzida e desfrutada pela Igreja (cf. O. T. Allis, Prophecy and the Church [Profecia e a igreja], p.154). Os pós-milenistas, embora discordem dos amilenistas quanto à cronologia, concordam com eles quanto à idéia da Igreja ser a única beneficiária da Nova Aliança (L. Boettner, The Millennium [O milênio], p.123). Este ponto de vista ignora as palavras de Jeremias (31.31), de que a aliança será feita com a casa de Israel e a casa de Judá. Além do mais, a inclusão da Igreja nos benefícios da Nova Aliança não elimina Israel como seu beneficiário. Em terceiro lugar, a remoção da Lei quando do estabelecimento da Nova Aliança não põe fim aos perpétuos compromissos divinos como a promessa da posse da terra (Gn 17.8) e a promessa de um rei davídico (2 Sm 7.16). Ainda mais, isso significaria a negação de um dos pilares do aliancismo (ou teologia do pacto), a contínua validade da Lei! Por fim, a participação da Igreja nas bênçãos da Nova Aliança de maneira alguma exaure o significado de promessas como: ―Não ensinarão mais cada um a seu próximo… Conhecei ao Senhor; porque todos me conhecerão‖ (Jr 31.34), e ―nunca mais será arrancado ou derribado‖ (31.40) (cf. a destruição de Jerusalém em d.C. 70, durante a Era da Igreja).
O moderno sistematizador do dispensacionalismo, J. N. Darby, adotou o ponto de vista de que a Nova Aliança pertencia apenas a Israel, sem qualquer parcela para a Igreja. Alguns não dispensacionalistas concordam com tal posição, como J. A. Thomson (Jeremiah, NICOT, 580) e G. von Rad (Old Testament Theology [Teologia do Antigo Testamento], 2:212-213). O problema básico com esse ponto de vista é sua abordagem seletiva para com a evidência disponível, pois Hebreus 8 não recebe tratamento adequado. O ponto de vista de que havia duas novas alianças foi proposto por Lewis S. Chafer e defendido, por algum tempo, por J. F. Walvoord e C. C. Ryrie. As razões para rejeitar tal ponto de vista são: a) a mesma nomenclatura é usada tanto para Israel quanto para a Igreja; b) tanto Israel quanto a Igreja têm a mesma base de perdão, que é um elemento essencial da Nova Aliança; c) a ausência de uma ―velha aliança‖ a ser substituída pela Nova, pelo menos no que diz respeito à Igreja. Parece apropriado indicar que Israel é o recipiente primário da Nova Aliança, ao passo que a Igreja partilha de alguns de seus benefícios (cf. Lc 22.20; 2 Co 3.6; Hb 8.6-13). No que tange à profecia de Jeremias, a Igreja desfruta o perdão dos pecados (Jr 31.34) e da interiorização da Lei [por meio do Espírito] (31.33; cf. Ez 36.27). Esses benefícios são outorgados com base nas promessas universais da Aliança Abraâmica (cf. Gn 12.3), da qual a Nova Aliança é um desdobramento. Isso pode ser visto na ilustração paulina da oliveira brava (cristãos gentios) que foi enxertada na oliveira cultivada, participando assim das bênçãos da raiz (i.e., a aliança abraâmica) em Romanos 11.11-24, uma passagem que ainda aponta para o futuro, em termos de um cumprimento completo das palavras de Jeremias.