Como escrever teologia sobre um livro que sequer menciona o nome de Deus? Pode parecer tarefa ingrata ou, até mesmo, impossível, mas basta ler o livro com atenção para perceber que embora o nome de Yahweh esteja ausente, Sua atuação é evidente nas entrelinhas do livro de Ester.
A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS
Esta, sem dúvida, é a faceta que mais se percebe em Ester. Naturalmente, não há declarações explícitas a respeito, mas os olhos da fé podem perceber no cuidado providencial que os personagens principais do livro − Ester e Mardoqueu − são alvo. A ascensão improvável de Ester ao favor real (cap. 2), a ocasional percepção de um plano assassino por Mardoqueu (cap. 2), o intervalo prolongado entre a concepção do plano e sua execução (cap. 3), a boa vontade real para Ester em uma hora crítica (cap. 5) e uma combinação inesperada de insônia real e de oportuna leitura de crônicas do reino (cap. 6), testemunham que havia a mão invisível a mover a luva da História em favor de Seu povo. Declarações abertas − ainda que indiretas − confirmam o ponto de vista mencionado. Uma vem do judeu Mardoqueu, que afirma que o livramento certamente chegaria para os judeus de outra parte, caso Ester recusasse agir como intermediária (4.13). A outra vem de uma pagã − Zerés − esposa de Hamã. Ela reconhece que seria impossível ao marido triunfar sobre Mardoqueu, por ele ser judeu (6.13). Isso testemunha um sentimento generalizado de que havia Alguém protegendo sobrenatural e soberanamente aquele povo.
A inversão da sorte, motivo comum no livro de Ester, aponta para o cumprimento de promessas abraâmicas de tratamento punitivo ou recompensador para indivíduos e/ou nações em vista do tratamento que deram para a descendência de Abraão. Apesar de sua meteórica ascensão no microcosmo da corte persa e de seu sonho ambicioso de se beneficiar às custas do genocídio dos judeus, Hamã cai vitimado não apenas por sua ganância e ódio, mas porque ele, sem saber, assume a postura de inimigo da promessa divina, à qual Yahweh é sempre fiel. De outro lado, Mardoqueu, que epitomiza a lealdade pactual, recusando-se a se prostrar diante de um simples mortal, tem sua lealdade ao Senhor celestial e ao senhor terreno recompensada com grande honra e fama, perpetuadas no livro e na Festa de Purim. É de se notar que embora o decreto para extermínio dos judeus visasse todo o império, a ênfase recai sobre os moradores de Susã, judeus que não haviam se comprometido com o retorno a Jerusalém e com a reconstrução da comunidade judia pós-exílica. Yahweh, mesmo diante da indiferença de grande parte de Seu povo, se manteve fiel à preservação de Israel, Seu povo pactual.
OS ATOS DE DEUS
Quando as forças do mal, canalizadas pela ambição e ódio de um indivíduo e seu clã, ameaçam a existência de Israel, Yahweh intervém. Ainda que a natureza de tal intervenção fique muito a dever à grandiosidade do êxodo ou da conquista, revela a consistência da fidelidade de Deus ao povo que canalizaria as bênçãos às demais nações.
O retrato que se tem do povo judeu no começo da ação de Hamã é a de um grupo amedrontado e acuado por seus inimigos − numericamente inferiores. É evidente a associação com as maldições da aliança em Levítico 26 e Deuteronômio 28, em que um pequeno número de inimigos poria um grande número de israelitas em fuga. Depois da intervenção de Yahweh, no entanto, o quadro é outro. Há uma percepção de que o povo se une em torno daqueles que o livraram − humanamente falando, Mardoqueu e Ester. Unir-se em torno deles, no entanto, é reconhecer a providente mão de Deus em favor de Seu povo pactual, e valorizar Israel como povo separado, distinto (como o próprio Hamã dissera; cf. 3.8).
ARGUMENTO BÁSICO
Comentários e introduções são quase unânimes em identificar o propósito de Ester como o de fornecer a base histórica para a Festa de Purim (cf. 3.7 e 9.24-26), que a crítica radical não tem conseguido comprovar que se origina de várias festas pagãs, como a farvardigan persa, ou festa dos mortos, ou ainda festivais babilônios como Akitu e Sakaia. Apesar desse elemento certamente estar presente no livro, a alegação de que este é o único, ou mesmo o principal propósito do livro, roubaria de Ester seu papel no desenvolvimento da revelação divina. O fato de um livro em que o nome de Deus nunca é mencionado, onde a Torá não tem espaço e os elementos tradicionais da piedade judia estão virtualmente ausentes (afora duas referências ao jejum em conexão com a narrativa de Mardoqueu), ter recebido lugar no cânon sagrado é realmente admirável, a não ser que tais omissões sejam um dispositivo literário proposital. Essas omissões teriam sido usadas para enaltecer a manifestação extraordinária da graça soberana para com uma nação que demonstrara, quando muito, indiferença à restauração prometida por Deus. Ester demonstra como o Deus da aliança abraâmica trabalha por meio das circunstâncias e detalhes aparentemente acidentais para cumprir Sua antiga promessa de proteção, recompensa, e castigo, dependendo de como o indivíduo ou a nação tratasse Israel (Gn 12.1-3). Para este escritor, no entanto, o principal propósito do livro é demonstrar como Deus provou ser fiel, mesmo quando Israel, quase em sua totalidade, se manteve alheio a Sua intervenção na História. A Festa de Purim é um meio de Israel relembrar tal fidelidade e regozijar-se por sua manifestação histórica nos dias de Mardoqueu. Esse tema da soberana intervenção de Deus em guardar Sua lealdade pactual aparece logo no início do livro. Xerxes reunira um enorme número de oficiais, provavelmente em preparação ao que viria a ser uma campanha militar desastrosa contra a Grécia (1.1- 9). Xerxes, embriagado com vinho, exige que Vasti, sua favorita na época, seja trazida diante de seus oficiais para exibir sua beleza. A recusa de Vasti , talvez motivada pelo aspecto nebuloso de sua aparição, provocou a fúria de Xerxes (1.10-12) e a recomendação de seus conselheiros de que Vasti fosse removida de seu lugar de honra no harém para não encorajar um ―movimento feminista‖ por todo o império (1.13-20). O capítulo 2 contém a idéia do livro na qual apresenta Ester, uma obscura judia, sendo trazida ao harém real como uma entre muitas ―recrutas‖, conforme a recomendação dos conselheiros (2.1-10). Este detalhe está de acordo com a narrativa de Heródoto a respeito das atividades de Xerxes após seu humilhante retorno da Grécia. No palácio real, Ester conquista a admiração e simpatia de todos que a encontram, mas especialmente do homem-chave, o eunuco Hegai, responsável pelo prolongado tratamento de beleza ao qual toda nova ―esposa‖ do rei era submetida (2.10-14). Ester, mantendo sua nacionalidade em segredo (2.10), conquistou a alcova real e o rei ficou tão satisfeito que ela foi escolhida como substituta de Vasti (2.15-18). Essa parte da narrativa também combina com a de Heródoto, que afirma ter Xerxes curado seu orgulho ferido com as mulheres de seu harém. Como provável resultado do colossal fracasso de Xerxes na Grécia, outro dos famosos golpes palacianos se desenvolveu. ―Casualmente‖, os planos para o assassinato do rei vazaram e chegaram aos ouvidos leais e atentos de Mardoqueu. Este, que tinha a conexão certa com o rei, passou a informação e seu feito foi registrado nas Crônicas persas (2.19-23). Hamã, o agagita, na disfarçada providência de Deus, é premiado com um cargo político importante no império (3.1). O autor cuidadosamente constrói um contraste entre o mérito não premiado de Mardoqueu e o prêmio imerecido de Hamã. Uma rixa entre Hamã e Mardoqueu que, como judeu típico, não se curvava diante de homem, se desenvolveu a ponto de provocar a tentativa de genocídio (3.2-7). O orgulho pessoal de Hamã o levou a oferecer uma alta soma a Xerxes pelo privilégio de eliminar o que ele apresentou como uma chaga no império. Xerxes, necessitado de dinheiro após a desastrosa campanha da Grécia, aceitou a proposta sem pestanejar, revelando assim a insensível atitude persa diante da vida humana (3.8-11).
O autor deixa claro que esse decreto, levado a todas as 127 províncias, era uma monstruosidade, que nem mesmo os persas pagãos conseguiam entender (3.12-15). Para os judeus isso foi como um toque fúnebre, já que o império persa ocupava virtualmente todo o Oriente Médio e toda a Ásia Menor, incluindo ainda o Egito, Sudão, e parte da Índia. Escapar, seria virtualmente impossível! O capítulo 4 contém as únicas indicações veladas da piedade judia tradicional quando os israelitas de todo o império se lamentam e jejuam por causa do decreto fatal. O autor focaliza as ações de Mardoqueu, sendo ele o elemento chave na resolução do conflito da narrativa (4.1-3). Ester, protegida pelo isolamento palaciano, precisa ser informada, e Mardoqueu provê não apenas os fatos, mas também um desafio, para que ela use sua posição influente a fim de assegurar a misericórdia real para seu povo (4.4-8). A relutância de Ester oferece a Mardoqueu a oportunidade de expressar sua convicção de que outras forças além dos reis da Pérsia controlam o destino de Israel, e que Ester deveria tirar proveito dos privilégios que sua elevação ―circunstancial‖ à posição de rainha lhe traziam (4.9-14). A reação de Ester poderia sugerir fatalismo (E se eu perecer, pereci [4.16]) se ela não tivesse se comprometido, e a suas servas, a jejuar, o que implicitamente indica oração (4.15-17). A narrativa completa gira em torno do primeiro parágrafo do capítulo 5. Ester, violando o protocolo da corte, aparece diante do rei sem ser convocada; essa quebra de protocolo poderia ter lhe custado a vida, mas outra vez a soberania de Deus prevalece e sua petição é reconhecida (5.1-3). Enquanto o plano de Ester para interceder pelos judeus incluía banquetes para o rei e Hamã (5.4-8), Deus usaria tais planos para concretizar os Seus. Ester, ao adiar sua petição, esperava receber favor do rei. O adiamento teve duas conseqüências: Hamã aprofundou sua determinação de destruir Mardoqueu, que ainda se recusava a se curvar diante dele (5.9-14), e instigado pela esposa construiu uma forca para esse fim. Xerxes, por outro lado, não dormiu à noite, outra circunstância providencial que lhe permitiu saber da lealdade de Mardoqueu, apesar de não ter lhe dado o apropriado reconhecimento por ter salvo sua vida. O resultado final dessa investigação noturna foi a elevação de Mardoqueu (6.1-9) e a humilhação pública de Hamã diante do judeu (6.10-14). O ritmo da narrativa se acelera enquanto o narrador descreve o segundo banquete, no qual Ester denuncia o genocídio planejado por Hamã (7.1-6), e Xerxes confunde o pedido de clemência de Hamã com uma tentativa de molestar sexualmente a rainha, uma impressão que sela a sorte de Hamã (7.7,8). Harbona, o eunuco, faz uma terceira acusação contra Hamã, a de tentar matar o mais recentemente honrado amigo do rei, Mardoqueu (7.9a). O cruel Hamã é atingido pela própria trama, quando é empalado (tipo de execução persa) na forca preparada por ele para Mardoqueu (7.9b). Esse tema literário de reversão da sorte é como que um resumo do livro. O restante do livro trata da reversão dos efeitos do edito genocida que ainda vigorava devido à natureza da lei persa. O rei deixa o assunto na mão de Mardoqueu (8.1-8), e ele redige um contra-edito autorizando os judeus a se armar e defender suas vidas e propriedades contra seus inimigos (8.9-17). A data seria a mesma, o 13º dia do mês de adar, a mesma data que o sorteio (purim) havia apontado para o genocídio planejado por Hamã.
O capítulo 9 contém a descrição da resistência judia e o triunfo sobre os inimigos (9.1- 17). É significante o fato que, apesar de autorizado pelo edito, o saque não aconteceu, fato que pode ser um contraste intencional entre Ester e a narrativa de 1 Samuel 15, quando Saul poupa o que deveria ser herem dedicado à destruição cerimonial como oferta ao Senhor. A defesa judia, em Susã, estendeu-se por mais um dia para garantir que outro ataque não se seguiria (9.11-17). O restante do capítulo contém a instituição da Festa de Purim como uma recordação do livramento dramático de outro genocídio antijudeu e instruções para sua celebração (9.18-32). O livro termina com um relato da grandeza de Xerxes e Mardoqueu (10.1-3). Esse pode ter sido o desejo do autor, indicar que os reis da Pérsia foram agentes da providência divina para proteção e restauração de Seu povo, com os judeus fiéis que Ele levantaria para feitos específicos (10.1-3).