Menu fechado

A organização de Israel: a teocracia

Devemos considerar a organização geral de Israel que se originou nesse berith (pacto). Isso é geralmente chamado de “a teocracia”. Esse nome não é encontrado nas Escrituras, apesar de descrever de maneira admirável com o o relato bíblico representa a constituição de Israel. O termo foi cunhado provavelmente por Josefo. Ele observa que, quanto ao governo das outras nações, algumas delas eram monarquias, outras oligarquias, ainda outras, democracias; o que Deus instituiu em Israel foi uma teocracia.

Obviamente, Josefo vê nisso algo distinto e único. Isso é correto no que diz respeito aos grandes sistemas de civilização daquela época. Porém, não é propriamente correto se Israel for comparado com outras tribos semíticas. O princípio teocrático, ou seja, o princípio da deidade ser a autoridade e poder supremos na vida nacional, parece comum entre os semitas. Nós podemos inferir o mesmo da observação de que melekh, “rei”, é um nome semita frequente para a deidade. Contudo, enquanto que sob circunstâncias ordinárias isso era uma mera crença, em Israel isso provou ser uma realidade indubitável.

As leis sob as quais Israel vivia não somente tinham a sanção divina por trás delas, no sentido geral no qual toda Lei e ordem, em última instância, derivam de Deus por meio da revelação geral na consciência, mas tinham também, no sentido específico, a noção de que Yahweh tinha revelado a Lei diretamente. Em outras palavras, Yahweh em pessoa desempenhou a tarefa que normalmente seria de um rei humano. E, na sequência também, Yahweh, por interferência sobrenatural, quando necessário, continuou a agir no papel de rei da nação. Esse fato estava tão profundamente encravado na consciência dos líderes de Israel que mesmo no tempo de Gideão e Samuel havia esse sentimento de proibição para se constituir um reino puramente humano. A união do senhorio religioso e do reino nacional na pessoa de Yahweh significava que, em Israel, as vidas civil e religiosa eram inextricavelmente entrelaçadas. Se a união existisse em qualquer pessoa que não Deus, a divisão das duas esferas de relacionamento teria sido concebível. O vínculo a Deus é de tal modo uno e indivisível que não se pode conceber que haja separação entre eles. Daí a condenação profética posterior da política, não da política perversa meramente, mas política em si, como depreciativa à prerrogativa de Yahweh.

Deve-se notar, mais adiante, que entre essas duas esferas concêntricas a religiosa tem a preeminência. É em função dessa que a outra existe. Para nosso sistema de governo político, tal inter-relação se apresentaria, é claro, como um sério e intolerável defeito. Não no caso de Israel. O alvo principal para o qual Israel havia sido criado não era para ensinar lições de economia política para o mundo; mas, no meio de um mundo pagão, ensinar a verdadeira religião, mesmo sacrificada pela propaganda e vantagens seculares.

Nem era meramente uma questão de ensinar religião para o mundo presente. A teocracia nunca teve a intenção de ser uma instituição missionária em seu estado no Antigo Testamento. O significado dessa organização ímpar de Israel pode ser corretamente avaliado ao lembrarmos que a teocracia tipificava nada menos do que o perfeito reino de Deus, o estado consumado dos céus. Nesse estado ideal, não mais haverá lugar para a distinção entre igreja e Estado. A primeira absorverá o último. De uma maneira ainda que tosca, o princípio envolvido já havia sido apreendido por Josefo. Na passagem introduzindo a palavra “teocracia”, ele observa que Moisés, ao dar tal constituição aos israelitas, não fez que a religião fosse parte da virtude, mas fez que todas as outras virtudes se tornassem parte da religião. Na fusão entre as duas esferas de vida secular e religiosa, a vida é expressa de maneira impressionante pela promessa divina de que Israel será um reino de sacerdotes e uma nação santa [Êx 19.6], Com o sacerdotes, eles não estão no reino, mas constituem o reino.

A FUNÇÃO DA LEI

Com a natureza da teocracia assim definida, podemos aprender qual era a função da Lei na qual ela recebeu sua expressão provisória. É extremamente importante distinguir cuidadosamente entre o propósito para o qual a Lei foi expressamente dada para Israel naquele tempo e os vários propósitos que ela de fato veio a servir no curso subsequente da História. Essas outras finalidades estão, é claro, desde o princípio, na mente de Deus. D o ponto de vista teísta, não pode haver nenhum resultado na História que não seja o desenrolar do profundo propósito de Deus. Nesse sentido, Paulo tem sido o grande mestre da filosofia da Lei na economia da redenção. A maioria das fórmulas paulinas traz um caráter negativo. A Lei operava, principalmente, para trazer e revelar a falência de certos métodos e tentativas. Ela servia como um pedagogo conduzindo a Cristo, vedada ao povo sob o pecado, não foi dada para vida, era enfraquecida pela carne, operava a condenação, trazia a maldição, é um ministro impotente da letra. Essas declarações de Paulo foram feitas sob pressão de uma filosofia sobre o propósito da Lei totalmente diferente, que ele percebeu ser inconsistente com os princípios da redenção e da graça.

Essa filosofia farisaica afirmava que a Lei tinha a intenção, baseando-se no princípio do mérito, de capacitar Israel para merecer a bênção do mundo por vir. Era uma interpretação escatológica e, portanto, bem abrangente. Porém, em sua abrangência, ela não podia falhar sendo abrangentemente errada, caso se provasse estar ela errada. A filosofia de Paulo, apesar de ser parcial e desenvolvida de um ponto de vista retrospectivo, tinha a vantagem de ser correta dentro da esfera limitada que ele havia proposto. É verdade que algumas das declarações do Pentateuco e do Antigo Testamento em geral possam, na superfície, parecer estar a favor da posição do Judaísmo. Em nenhum lugar se fala tão enfaticamente sobre a Lei não poder ser guardada. E não somente isso, mas que a guarda da Lei será recompensada é afirmado repetidamente. A conservação dos privilégios do berith por parte de Israel é feita de maneira condicionada à obediência. E prometido que aquele que executa os mandamentos encontrará vida por meio deles. Consequentemente, muitos são os escritores que declararam que, do ponto de vista histórico, simpatizam com os judaizantes, e não com Paulo.

É necessário somente um momento de reflexão para provar que isso é insustentável, e que, exatamente do ponto de vista histórico, Paulo captou o sentido da Lei mais precisamente do que seus oponentes. A Lei foi dada depois de a redenção de Israel ter sido efetuada, e o povo já havia entrado no gozo de muitas das bênçãos do berith. Particularmente, tomar posse da terra prometida não poderia ser dependente de observância prévia da Lei, uma vez que, durante a jornada no deserto, várias de suas prescrições não podiam ser observadas. É evidente, então, que a guarda da Lei não consta naquela conjuntura, como base meritória para herdar a vida. Ela é baseada na graça somente, de modo não menos enfático que Paulo baseia nela a salvação. Contudo, pode-se objetar que se a observância da Lei não pode ser a base para receber, ainda assim é a base para a conservação dos privilégios herdados. Não se pode negar aqui, é claro, que uma relação real existe. Mas os judaizantes erraram ao inferir que a relação deve ser meritória, ou seja, se Israel conservar os estimados dons de Yahweh por meio da observância de sua Lei, isso deve ser assim porque, no senso estrito de justiça, eles mereceram. A relação é de um tipo totalmente diferente. Ela pertence não à esfera legal de mérito, mas à esfera típico-simbólica da conveniência de expressão.

Com o declarado, a presença de Israel em Canaã tipificava o estado celestial aperfeiçoado do povo de Deus. Por essas circunstâncias, o ideal de absoluta conformidade à Lei divina de santidade legal tinha de ser mantido. Mesmo que eles não fossem capazes de guardar essa Lei no sentido espiritual paulino, mais ainda, mesmo que eles não fossem capazes de guardá-la externa e ritualmente, o requisito não podia ser diminuído. Quando a apostasia, numa escala geral, tomou lugar, eles não puderam permanecer na terra prometida. Quando se desqualificaram para tipificar o estado de santidade, eles ipso facto se desqualificaram para tipificar o estado de bênção e tiveram de ir para o cativeiro. Isso não significa que cada indivíduo israelita tinha de ser perfeito em cada detalhe de sua vida e que, baseado nisso, a continuidade do favor de Deus foi suspensa. Yahweh lidou primariamente com a nação e, por intermédio da nação, com o indivíduo, como agora, no pacto da graça, ele lida com os crentes e seus filhos na continuidade das gerações. Há solidariedade entre os membros do povo de Deus, mas esse mesmo princípio também opera para neutralizar o efeito do pecado individual, conquanto a nação permaneça fiel. A atitude observada pela nação e seus líderes representantes foi o fator decisivo. Apesar das demandas da Lei terem sido cumpridas de maneira imperfeita em várias ocasiões, contudo Israel permaneceu de posse do favor de Deus por um longo tempo. E, mesmo quando o povo como um todo se tornou apóstata, e foi para o exílio, Yahweh, por causa disso, não permitiu que o berith falhasse. Depois do merecido castigo e arrependimento, ele conduziu Israel de volta ao seu favor.

Essa é a prova mais convincente de que a observância da Lei não é a base meritória da bênção. Deus, em tais casos, simplesmente repete o que fez no princípio, ser favorável para com Israel pelo princípio da livre graça. Está em acordo com isso o fato de que a Lei é representada no Antigo Testamento não com o um fardo e um jugo que mais tarde vieram a ser a experiência religiosa dos judeus, mas como uma das maiores bênçãos e distinções que Yahweh havia conferido ao seu povo [Dt 4.7,8; SI 147.19,20; cf. mesmo em Paulo, Rm 9.4,5]. E, no ensinamento de Paulo, a linha que corresponde a essa doutrina do Antigo Testamento sobre santidade com o a condição indispensável (ainda que não meritória) para receber a herança pode ser seguida de m odo distinto.

Pelo que está afirmado, veremos quão distorcido e equivocado seria identificar o Antigo Testamento com a Lei, considerada negativamente, e o Novo Testamento com o evangelho. Isso significaria que não havia Evangelho sob a antiga dispensação. As afirmações de Paulo são, algumas vezes, aptas a nos conduzir nesse erro. Mas elas não são expressas pelo apóstolo nesse sentido absoluto, mutuamente excludente. Uma analogia esclarecedora sobre isso é fornecida pela maneira segundo a qual Paulo fala sobre a fé e sua relação com as duas dispensações. Em Gálatas 3.23, 25, ele fala da “vinda” da fé, como se nunca tivesse havido fé antes. E, mesmo assim, o mesmo Paulo, em R omanos 4.16ss., fala detalhadamente sobre o papel desempenhado pela fé na vida de Abraão, e com o ela dominava virtualmente todo o sistema do Antigo Testamento.

É evidente que existem dois pontos de vista diferentes para considerar o conteúdo da antiga dispensação. Quando considerada em comparação com a estrutura revelada e rearranjada do Novo Testamento, os juízos negativos é que estão presentes. Quando, entretanto, o Antigo Testamento é tido como uma entidade em si e como devidamente ajustado em si, e visto, por assim dizer, com os olhos do próprio Antigo Testamento, nós julgamos necessário levar em consideração os elementos positivos pelos quais ele prefigurava e antecipava, tipicamente, o Novo Testamento. E, assim, descobrimos que havia um Evangelho verdadeiro sob a teocracia. O povo de Deus daqueles dias não vivia e morria sob um sistema de religião impraticável e não redentor, que não podia dar acesso real e contato espiritual com Deus. Esse elemento do Evangelho também não estava contido exclusivamente na revelação que precedeu, acompanhou e seguiu a Lei; ele é encontrado na própria Lei. Aquilo que chamamos de “sistema legal” é permeado com os traços do Evangelho, graça e fé. A Lei ritual é especialmente rica deles. Cada sacrifício e cada ato de purificação proclamavam o princípio da graça. Se esse não fosse o caso, então a ideia de continuidade vital e positiva teria de ser abandonada. Em vez disso, haveria conflito e oposição. Tal é a posição gnóstica, mas essa não é a visão seja do Antigo Testamento, seja de Paulo, ou da teologia da igreja.

E, ainda assim, mais uma vez, não podemos esquecer que essa revelação e promulgação do Evangelho nas instituições mosaicas trazem, quanto à forma, um caráter legal e diferem, nesse aspecto, do modo que exibem no tempo presente. Pois mesmo essas instituições portadoras do Evangelho eram parte de um grande sistema de ordenanças cuja observância foi tornada obrigatória para o povo. Daí, havia uma falta de liberdade mesmo na apresentação do serviço ao Evangelho. O Evangelho era pregado sob a restrição da Lei e recebido sob a mesma. Ele não era permitido estar em posição superior ao ambiente legal no qual havia sido colocado. Somente o Novo Testamento trouxe plena liberdade nesse aspecto.

—- Retirado de: Geerhardus Vos – Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento

Artigos relacionados