Uma das figuras usadas para Yahweh no Pentateuco é a de um guerreiro (Êx 14.4; 15.3; Dt 3.22). No livro de Josué a figura ganha contornos ainda mais evidentes com a manifestação do שַרֹ צְבָאֹ יהוה (príncipe da hoste do SENHOR), que é entendido como uma cristofania (5.13; 6.5).
A atividade de Yahweh como o líder de Israel no campo de batalha precisa ser entendida como Sua vindicação da santidade divina ofendida por vários séculos devido ao estilo de vida depravado dos cananeus. O câncer moral que se instalara em Canaã nascera na tenda de Noé, após o dilúvio (Gn 9.20-27), e se perpetuara no caráter e na conduta dos descendentes de Cão (a maldição corporativa de Noé foi lançada contra o neto, porque ele haveria de reproduzir o caráter profano do pai).
Depois de séculos em que os testemunhos piedosos de Abraão e Melquisedeque foram ostensivamente rejeitados e toda sorte de maldade se tornara lugar-comum, Yahweh lançou-se à luta contra os cananeus e usou os israelitas para eliminar do mundo uma sociedade corrupta e corruptora.
A prova de que tal tratamento não era cruel, arbitrário e caprichoso é que o pecado de Israel foi punido com igual severidade (Js 7), de modo que a santidade de Deus ficasse evidente a todos, israelitas e cananeus. Outra prova é que a misericórdia divina podia se estender a não-israelitas, desde que, pela fé, se colocassem sob a mão de Yahweh (diretamente no caso de Raabe e indiretamente no caso dos gibeonitas).
Josué percebeu claramente que a absoluta santidade de Yahweh tornava impossível a Israel adorá-lo sem incorrer em falhas, que haveriam de suscitar a ira disciplinadora do Deus da aliança (24.19, 20). Em certo sentido, Josué profetizava os acontecimentos trágicos do livro de Juízes e apontava para a necessidade de uma provisão ainda maior que a oferecida pela lei mosaica
O livro de Josué apresenta uma série de incidentes que realça a intervenção de Deus na História – tempo e espaço – para o cumprimento de Seu propósito maior, a restauração de Sua soberania mediada sobre a criação. O estabelecimento de Israel em Canaã era parte integrante desse processo, como já fora prometido aos patriarcas e reiterado a Moisés, quando da saída do povo do Egito (Êx 15.17, 18).
O episódio mais marcante é certamente o pecado de Acã, que combinou ganância com hubris, presumindo ser capaz de melhor prover suas necessidades ou desejos do que Yahweh. A visão de que Yahweh obteria glória, mesmo por meio de tal situação, aparece em Josué 7.19. O efeito corporativo de uma transgressão individual ressalta a razão pela qual Yahweh, no final do livro, se mostra tão severo em Suas exortações contra o pecado da infidelidade. O temor que o próprio Josué sentiu (8.1), indica que mesmo uma tragédia desse porte tem seu efeito benéfico, quando o povo de Deus leva a sério Sua santidade e o zelo que Ele tem por Seu nome. Outro episódio que ressalta esse aspecto do propósito de Deus é a trama dos gibeonitas, levianamente aceita por Josué e pelos anciãos de Israel (9.1-27). Este foi o primeiro de vários enclaves cananitas que restariam entre os israelitas, e que Deus usaria para pôr à prova o coração de Seu povo (cf. Jz 1.19-36; 2.1-3, 20-23).
Mais uma vez é o incidente de Acã que fornece o principal exemplo da ação divina contra o pecado. A verdade é que, se levarmos em conta Gênesis 15.16, todo o livro é um exemplo dessa ação.
A circuncisão dos israelitas ao atravessar o Jordão é um episódio que revela o empenho de Yahweh em remover barreiras de pecado e desobediência que impeçam Seu povo de desfrutar plenamente as bênçãos que Ele deseja lhes conceder. A geração que no deserto fora privada da participação formal na aliança abraâmica precisava, agora, no momento mais crítico de sua breve estada na Terra Prometida, aprender o sentido da dependência de Yahweh. A desobediência e alienação, características de Israel no Egito, foram ali extirpadas simbolicamente e o povo foi preparado para desfrutar as bênçãos das duas alianças (Js 5.1-12). A determinação divina de punir o mal é reforçada pela exortação final de Josué quanto ao perigo da miscigenação com os cananeus, que acabaria por produzir o castigo pactual de expulsão da Terra Prometida (23.12, 13).
Em meio aos predestinados à destruição, em Canaã, uns poucos viveram por ter lançado Sua sorte com o povo de Deus. Raabe e sua família escaparam à destruição maciça de Jericó (caps. 2 e 6) e os gibeonitas escaparam duas vezes à destruição completa, uma vez por meio de mentira e engano, e outra pela fidelidade que um voto em nome de Yahweh impusera a Israel (caps. 9 e 10).
Essa determinação divina aparece sempre atrelada à obediência aos preceitos da aliança contidos na lei de Moisés (1.6-8; 23.6-8). Josué, o líder do povo, seria abençoado se perseverasse na observância da Lei, e igualmente toda a nação se beneficiaria se mantivesse Yahweh como o único objeto de sua devoção. O exemplo individual de Calebe se destaca no livro de Josué, como prova de que a fidelidade a Yahweh, mesmo em meio à dúvida e à oposição, acabaria tendo recompensa fiel e gratificante (14.6-15).
- —- Retirado de Carlos O C Pinto – Foco e Desenvolvimento No Antigo Testamento.