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A Lei ritual (cerimonial)

A Lei ritual: era também chamada de Lei cerimonial. Ela forma uma parte integral da legislação mosaica. Os elementos que a compõem não foram, contudo, necessariamente introduzidos de novo no tempo de Moisés. Muitos dos costumes mais antigos foram, provavelmente, incorporados. Alguns têm pensado que as ordenanças aqui prescritas não pertencem originalmente à estrutura da teocracia, mas foram impostas sobre o povo como uma punição depois do pecado com o bezerro de ouro. Essa visão tem sido mantida em duas formas, sendo uma mais inócua e outra mais séria. Vários pais da igreja, talvez como reação ao Judaísmo, embraçaram a primeira. Mais tarde, Cocejus, teólogo reformado, a adotou. Em ambos os casos, isso não era acompanhado por uma visão menor ou depreciativa a respeito do conteúdo dessas leis de per si

Mais séria era a forma da teoria proposta por Spencer, afirmada previamente em relação com a redenção do Egito. Spencer acrescentou, é claro, a essa visão a procedência pagã das práticas rituais, uma atitude bem cética quanto à sua importância típica. De acordo com nossa prévia interpretação da estrutura da teocracia, é precisamente nessas instituições rituais que grande parte do Evangelho de Moisés está incluso. A rejeição dele como não sendo da determinação de Deus “desevangeliza” grande parte da revelação mosaica.

Em tempos mais recentes, o erro em questão tem desempenhado um papel considerável na avaliação crítica de várias partes do Antigo Testamento. A escola de Wellhausen entende que vários dos costumes rituais são oriundos dos cananitas, e isso, mais uma vez por causa desse pano de fundo, tem colocado extrema e quase exclusiva ênfase no ensino ético que é tido, isoladamente, como de valor permanente. A prova para a última interpretação é encontrada na construção geral da história da religião do Antigo Testamento por essa escola. Autoridade escriturística para a adoção dessa visão foi buscada por seus mais antigos defensores. Esse respaldo foi encontrado no tempo da introdução dos rituais, ou seja, imediatamente após o ato de idolatria com o bezerro de ouro ter sido cometido. É verdade que uma combinação existe. Porém, não havia nenhuma relação casual como a teoria queria nos fazer acreditar. De fato, o conteúdo dessa parte da Lei foi comunicado por Deus a Moisés enquanto ele ainda estava no monte, e foi somente depois de seu retorno que ele tomou conhecimento do que havia ocorrido no meio tempo. Na intenção do Legislador, então, a incorporação de tudo isso na religião de Israel não poderia ter sido uma reflexão posterior.

Algumas vezes, Ezequiel 20.25 é citado como prova do caráter penal da observância dessas coisas. O profeta faz distinção entre as ordenanças que os israelitas haviam rejeitado e “estatutos que não eram bons e juízos pelos quais não haviam de viver”. Yahweh lhes deu os últimos como punição por eles não terem guardado os primeiros. Esses estatutos e juízos punitivos são identificados com a Lei ritual. Essa é uma exegese impossível, especialmente se nos lembrarmos de que Ezequiel era um sacerdote-profeta, para quem deve ter sido impossível tratar as mesmas coisas com as quais ele lidava como coisas puramente impostas como punição. O que precisamente “os estatutos que não eram bons e juízos pelos quais não haviam de viver” significavam é outra questão. Talvez essas palavras se refiram aos costumes idólatras, os quais, em sua história posterior, por exemplo no tempo de Manassés, o povo adotou. Fazer que os filhos fossem passados pelo fogo é mencionado como um deles (v. 26). E dito, contudo, que Yahweh “deu-lhes” essas ordenanças perversas. Isso não é fácil de explicar. Talvez possa ser entendido a partir da ordenação providencial da História por Deus, o que levou à sua apostasia com tais cultos pagãos.

SÍMBOLOS E TIPOS

A o determinar a função da Lei cerimonial, devemos levar em consideração seus dois amplos aspectos, o simbólico e o típico, e a relação entre eles. As mesmas coisas eram, quando olhadas por determinado ponto de vista, símbolos; e por outro, tipos. Um símbolo é, em sua importância religiosa, algo que retrata profundamente certo fato, princípio ou relacionamento de natureza espiritual numa forma visível. As coisas que ele ilustra são de existência presente e de aplicação presente. Essas coisas estão em vigor no tempo em que o símbolo está em operação.

A mesma coisa, quando considerada como um tipo, é diferente. Uma coisa típica é prospectiva; ela se relaciona com o que virá a ser real ou aplicável no futuro. No Novo Testamento, a palavra “tipo” ocorre somente uma vez [Rm 5.14], em que é dito que Adão é tipo de Cristo. Esse é o sentido técnico, teológico da palavra que, portanto, deve ter estado em uso antes do tempo de Paulo. Os teólogos judeus tinham, sem dúvida, seu sistema de tipologia. A palavra veio a ser usada tecnicamente de um modo bem natural. Seu sentido primário e físico é aquele de uma marca ou impressão feita sobre alguma substância macia por meio de pressão ou golpe (tupto, “golpear”). Esse sentido ocorre em João 20.25. A partir desse significado se desenvolveu o sentido de “forma”, “imagem”, possivelmente do fato de que a impressão feita em moedas produzia uma imagem [At 7.43]. Mas o sentido de “imagem” muda facilmente para o de “modelo”, “exemplo” [At 23.25; 2Ts 3.9]. Romanos 5.14 se relaciona a esse terceiro uso técnico da palavra.

O “antítipo”, o que foi imprimido, corresponde ao “tipo”, o que imprime. Isso também é usado tecnicamente no Novo Testamento. Tanto Pedro como a Epístola aos Hebreus o empregam. Ele indica a cópia tirada do tipo técnico. Há, todavia, uma diferença entre esses dois escritores. Pedro encontra o tipo técnico na história do Antigo Testamento. A água do batismo, para ele, é o antítipo daquela do dilúvio [lPe 3.21]. O escritor de Hebreus encontra o tipo, o modelo, no mundo celestial. Para ele, portanto, as mesmas coisas do Antigo Testamento que Pedro chamaria de tipos já são antítipos [Hb 9.24], O primeiro é mais teológico; o segundo é uma visão mais puramente histórica do relacionamento.

O problema principal a se entender é: como o mesmo sistema de representações pode ser usado ao mesmo tempo nas capacidades simbólica e típica? Obviamente, isso teria sido impossível se as coisas representadas, em cada caso diferente ou diverso, não estivessem relacionadas umas com as outras. Se alguma coisa é uma descrição acurada de certa realidade, então ela seria desqualificada por essa mesma razão, para apontar para outra realidade futura de uma natureza bem diferente. A solução do problema está em que as coisas simbolizadas e as coisas tipificadas não são diferentes arranjos de coisas. Elas são, na realidade, as mesmas coisas, diferentes somente em que elas vêm primeiro num período mais inicial do desenvolvimento da redenção e, então, mais uma vez, num período posterior, mais avançado. Assim, o que é simbólico quanto à edição já existente do fato ou verdade se torna típico, profético, da edição posterior, final daquele mesmo fato ou verdade. Se perceberá, a partir disso, que um tipo nunca pode ser um tipo independentemente de primeiro ser um símbolo. O portão para a casa da tipologia está no outro extremo da casa do simbolismo.

Essa é a regra fundamental a ser observada ao se afirmar quais elementos no Antigo Testamento são típicos, e em quê consistem as coisas correspondentes a eles com o antítipos. Somente depois de ter descoberto o que uma coisa simboliza é que podemos legitimamente perguntar o que ela tipifica, pois a última não pode ser outra coisa que não a primeira colocada num plano mais elevado. O laço que une tipo e antítipo juntos deve ser de continuidade vital no progresso da redenção. Onde isso é ignorado e no lugar desse laço são colocadas semelhanças acidentais, vazias de importância espiritual inerente, acontece toda a sorte de absurdos, de modo a colocar em descrédito tudo sobre tipologia. Exemplos disso são: o cordão escarlate de Raabe prefigura o sangue de Cristo; os quatro leprosos de Samaria, os quatro evangelistas.

Essas extravagâncias têm produzido um desgosto por tipologia em mentes mais treinadas. A fim de arrancar essas ervas daninhas, foi proposto que se lide somente com aqueles que são reconhecidamente tipos no Novo Testamento. Esses eram chamados de typi innati, “tipos inatos”. Os outros, cuja importância típica tinha de ser descoberta por meio de pesquisa, eram chamados de typi illati. Então, os racionalistas deram um passo mais adiante, afirmando que todas as instâncias de tipologia no Novo Testamento são apenas vários exemplos da exegese rabínica alegorizante. Isso colocaria nosso Senhor e seus apóstolos como exegetas fantasiosos. Porém, mesmo a distinção entre typi innati e typi illati não pode ser sustentada. O simples fato de que nenhum escritor no Novo Testamento se refira a certas características como típicas não é prova suficiente para falta de importância típica (ou tipológica). Tipos, nesse caso, se colocam na mesma posição que as profecias. O Novo Testamento, em várias ocasiões, chama nossa atenção para o cumprimento de certas profecias, algumas vezes de natureza tal que talvez não as identificássemos como sendo profecias. E, ainda assim, não estamos restritos, por isso, de pesquisar o campo da profecia e procurar no Novo Testamento por outros casos de cumprimento. Os casos de tipologia atestados pelos escritores do Novo Testamento não têm nada de peculiar em si. Apenas reconhecê-los levaria a um resultado altamente incompleto e incoerente. Um sistema de tipos é algo racional, cuja forma, espera-se, venha da sabedoria divina. Mas a inserção aqui e ali de algumas alusões isoladas estaria em desarmonia com a evidência do desígnio na revelação.

Nós temos, além disso, o encorajamento direto do Novo Testamento para prestar atenção ao aspecto típico das Escrituras do Antigo Testamento. Na estrada de Emaús, nosso Senhor, começando por Moisés, passando pelos profetas, interpretou para os discípulos as coisas concernentes a si mesmo em toda a Escritura. Uma vez que a Lei de Moisés está incluída, algumas dessas coisas devem ter sido de natureza típica. Ele repreendeu seus companheiros porque eram tardios de coração para entender e crer nessas prefigurações concernentes ao seu trabalho e carreira. O autor de Hebreus notifica que, quanto ao tabernáculo, havia muito mais importância típica nisso do que ele gostaria de expor [9.5], Ele diz o mesmo a respeito de Melquisedeque como uma figura típica que seus leitores haviam falhado em apreciar [5.11ss.]. E inevitável, claro, que nesse tipo de interpretação de personagens do Antigo Testamento deva entrar um elemento de incerteza. Porém, no final, esse é um elemento que está presente em toda exegese.

Além dos tipos rituais, existem os tipos históricos no Antigo Testamento. Já nos tornamos familiarizados com alguns deles na narrativa precedente. Havia também, previamente, os tipos rituais. Mas todos, no geral, eram mais ou menos esporádicos. A novidade é que agora, no tempo de Moisés, um sistema de tipos é estabelecido, de modo que todo organismo do mundo da redenção, por assim dizer, encontra uma materialização típica na terra. Os tipos são sombras de um corpo que é Cristo. Se o corpo chamado Cristo era um organismo, então, também, as suas sombras, que vieram antes, devem ter possuído o mesmo caráter. Em Gálatas 4.3 e Colossenses 2.20 Paulo fala da instituição ritual como “rudimentos do mundo”. Ele atribui esse caráter de rudimento a eles porque eles se ocupam das coisas externas e materiais. Em certo sentido (porém não como formulação), Paulo colocou as cerimônias do Antigo Testamento numa linha similar à dos costumes religiosos pagãos. N o paganismo, os ritos religiosos possuem esse caráter em razão de sua dependência geral na tendência simbólica. Nas instituições mosaicas, esse simbolismo natural também está na base, mas aqui havia um controle divino especial na formação dos materiais. Assim, porque a verdade encontrou expressão em formas físicas, dizemos que ela veio num plano inferior. Sob o Novo Testamento, esse modo exteriorizado de expressão foi retido somente nas duas instâncias do Batismo e da Ceia do Senhor, mas todo o Antigo Testamento ainda se move nessa esfera física. Por conseguinte, em Hebreus 9.1, o tabernáculo é chamado de “um santuário terreno”, ou seja, um santuário pertencente a este mundo físico. Era apropriado que, dessa maneira, um tipo de substrato artificial pudesse ser criado para que a verdade da redenção se assentasse sobre ele. A verdade jaz suspensa no ar. No Novo Testamento, ela estava com os fatos consumados para se ligar a eles. Enquanto eles ainda estavam em formação, um suporte provisório foi construído para eles nas instituições cerimoniais.

D o que foi dito segue-se que não se esperava que a compreensão típica e simbólica das cerimônias mantivesse o mesmo ritmo. A Lei desempenhou sua função simbólica em virtude de seu caráter inteligível inerente. Isso era diferente com os tipos. Apesar de a eficácia provisória defectiva das cerimônias poder, até certo ponto, ser percebida, era muito mais difícil dizer o que se pretendia colocar no lugar no futuro. Os tipos, aqui, precisam do auxílio da profecia para a sua interpretação [cf. Is 53], Nós não devemos inferir, da nossa leitura comparativamente fácil dos tipos, que os antigos israelitas sentiram o mesmo ao interpretá-los. E anacrônico querer trazer para a mentalidade do Antigo Testamento nossa consciência doutrinária desenvolvida sobre essas questões. A falha na compreensão, contudo, não diminui a importância objetiva que esses tipos tiveram no propósito de Deus. Mas também é possível cometer o erro oposto de perpetuar a forma típica da religião do Antigo Testamento ao inseri-la no Novo Testamento. Isso é o que a Igreja Católica Romana faz em larga escala. E, ao fazer isso, em vez de elevar a substância dos tipos para um plano mais elevado, ela simplesmente reproduz e repete. Isso é destrutivo para toda relação típica.

Para mais sobre isso, leia o nosso post sobre o Tabernáculo.

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